São Paulo, Quinta-feira, 28 de Janeiro de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

OPINIÃO ECONÔMICA

"Calote" russo, (bom) exemplo para o Brasil

ALOYSIO BIONDI

Segunda-feira passada. Aqui dentro, o dólar dispara, o real despenca. Na Europa, surge o anúncio oficial de que os banqueiros privados internacionais aceitaram iniciar conversações para renegociar a dívida externa da Rússia. Isto é, os banqueiros internacionais, após muita encenação, estão sendo forçados a aceitar que a Rússia pague sua dívida em condições favoráveis, que não agravem a recessão, o desemprego, os abalos na economia.
Como a Rússia conseguiu isso? Como é mais do que sabido, em agosto do ano passado o governo russo declarou a "moratória", isto é, informou aos credores internacionais que o país não tinha os dólares suficientes para pagar todos os compromissos que estavam vencendo no exterior. Segundo o noticiário distorcido, predominante desde aquela época, a Rússia simplesmente teria dado o "calote" nos credores, que "viram seus empréstimos evaporarem ou caírem até 90%". Não é verdade.
Desde outubro, a Rússia comunicava aos banqueiros internacionais que desejava honrar suas dívidas -mas só poderiam pagá-las em novas condições. Quais? Primeiro ponto: concessão de prazos maiores. Ou mais claramente: a Rússia se dispõe a pagar 10% à vista, em dólar, e 90% em títulos do governo, dos quais somente 30% em dólar (isto é, se o dólar subir e o rublo cair, ao longo do período, o banqueiro não terá prejuízo com a desvalorização) e 60% em rublo.
Desde o começo, a proposta russa foi aceita, como ponto de partida para negociações, pelos bancos europeus. Mas, nesses casos de "moratória", o grupo de credores somente pode negociar quando 80% dos bancos emprestadores aceitarem estudar a proposta.
Foi exatamente o que aconteceu na semana passada: atingiu-se esse número, de 80% dos bancos, e as negociações vão ter início. Uma notícia importantíssima para a economia mundial e, claro, muito mais importante ainda para o Brasil, mergulhado na crise do real. Foi completamente ignorada pelos meios de comunicação e formadores de opinião. Um silêncio que, certamente, agradou muitíssimo ao presidente Fernando Henrique Cardoso, tendo-se em vista que a notícia mostraria à sociedade brasileira que a "moratória" não é a catástrofe que se diz. Que a moratória é, na verdade, uma alternativa ao acordo desastroso com o FMI, a ser adotada com urgência pelo governo para antes do desastre total que ameaça o real.

A hora é agora
Para entender a necessidade urgente da moratória, é preciso desfazer algumas confusões que o noticiário tem provocado na opinião pública e também relembrar algumas expectativas otimistas criadas na época do acordo com o FMI e sobre as quais, estrategicamente, não se fala mais -como o célebre pacote de "socorro" dos banqueiros "muy" amigos:
Fuga de dólares - A expressão é enganosa. Deixa a impressão, na opinião pública, de que a saída de dólares é resultado -atenção- apenas da ação de especuladores e investidores que haviam aplicado seus dólares no Brasil nos últimos anos. Aumentando a confusão, há até porta-vozes do governo, errando mais uma vez, dizendo que a "fuga de dólares agora deve diminuir, porque a quase totalidade dos capitais especulativos já saiu".
Tudo errado. A "fuga de dólares" tem outras fontes, e fontes enormes. Por exemplo: empresas brasileiras/multinacionais que haviam tomado empréstimos no exterior e que resolveram pagá-los antes da data do vencimento (daqui a um, dois anos ou mais) porque já temiam a desvalorização do real, o que aumentaria suas dívidas. Bilhões e bilhões de dólares saíram por essa fonte. Agora, que a desvalorização já veio, ela deve realmente estancar. Mas há outra fonte para a "fuga" e que continua. Mais claramente: bancos estrangeiros que haviam emprestado bilhões e bilhões de dólares a empresas brasileiras/ multinacionais não estão renovando seus empréstimos (ou até os cobram antes, no prazo de um ano), isto é, as empresas precisam remeter dólares para quitá-los.
Sem crédito - É bom, muito importante lembrar que, quando o "socorro" do FMI estava sendo discutido, importantes banqueiros internacionais vieram ao Brasil, alguns deles chegando a ter encontros oficiais com o presidente FHC. O que se noticiou na época? Que eles fariam um "pacote" próprio de socorro ao Brasil, de US$ 10 bilhões a US$ 15 bilhões. Por isso mesmo -foi a desculpa largamente utilizada na época- esses bancos não estavam renovando empréstimos a empresas do Brasil: "Quando o acordo com o FMI estiver pronto, virá o "socorro monstro" dos bancos privados. E então é impossível e desnecessário manter os empréstimos atuais". Só que os banqueiros internacionais não honraram suas promessas (pudera, com um governo tão compreensivo...). E continuaram a exigir o pagamento dos empréstimos que estão vencendo. Eis porque a "fuga de dólares" continua: os banqueiros estão negando crédito ao Brasil. E o país caminha para o colapso.
Sem reservas - O governo afirma que o país ainda tem US$ 27 bilhões em reservas, que chegariam aos US$ 36 bilhões, se contados os US$ 9 bilhões do "pacote" do FMI. Desse total, o mesmo governo prevê que devem ser descontados US$ 15 bilhões, relativos ao pagamento de compromissos que vencem nos próximos 180 dias. Assim, as reservas, incluindo o dinheiro do FMI, cairiam para US$ 21 bilhões. E acontece, ainda, que o governo está falando apenas nos "pagamentos já programados" e não está levando em conta os "pagamentos antecipados" que alimentam a chamada fuga de dólares nem tampouco os novos "rombos" na balança comercial, remessas das multinacionais etc.
Bom lembrar que, no ano passado, se descobriu um "erro" imenso, ou manipulação imensa do Banco Central, em suas programações de saída de dólares: suas estatísticas só registravam os empréstimos a ser pagos que haviam sido contratados para vencimento em 180 dias e não incluíam os empréstimos contratados havia dois anos ou três anos, dez anos -e que também estavam vencendo nos próximos 180 dias. Em poucas palavras, a cifra de US$ 21 bilhões que o governo anuncia para as reservas é claramente otimista demais. Elas continuam a cair perigosamente, porque o "mercado" sabe fazer contas, teme o pior e mantém a "fuga de dólares".
É esse o motivo real da falta de credibilidade do real, hoje. Não tem nada a ver com "ajustes fiscais" ou o desempenho do Congresso Nacional. A moratória é a única saída para evitar um grande desastre, após o esgotamento das reservas. Já.


Aloysio Biondi, 62, é jornalista econômico. Foi editor de Economia da Folha. Escreve às quintas-feiras no caderno Dinheiro.



Texto Anterior: Artigo - Charles Barnsley Holland: A sociedade e as práticas contábeis
Próximo Texto: Luís Nassif: Gerência e marketing
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.