São Paulo, domingo, 28 de fevereiro de 1999

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
Apertem os cintos, o piloto...

LUCIANO COUTINHO
² A exacerbação caótica da maxidesvalorização (de 100% ou mais) foi a trajetória observada em todas as economias que ostentaram elevados déficits em conta corrente, após anos consecutivos de sobreapreciação da taxa de câmbio (México, Coréia, Tailândia, Indonésia). No nosso caso, a crise foi claramente anunciada, com suficiente antecipação, permitindo aos agentes econômicos preparar hedge e até mesmo ganhar escandalosamente na especulação contra o câmbio. Além disso, o governo contou com uma operação de socorro prévio por parte do FMI (programa de US$ 41,5 bilhões acertado em dezembro passado). Sob essas condições poder-se-ia esperar, no caso brasileiro, um desfecho menos deletério.
Vem sendo surpreendente, porém, o imobilismo e a inépcia das autoridades econômicas em tomar a iniciativa das ações. Tendo descartado um "standstill" temporário para negociar novas condições de financiamento externo -o que lhe permitiria ordenar o mercado de câmbio-, o governo FHC auto-demitiu-se, colocando-se numa posição de refém dos investidores e dos bancos internacionais, rezando para que um entendimento rápido com o FMI possa tornar minimamente administráveis as nossas contas cambiais.
O problema é que há uma travessia muito precária nas próximas semanas em que o Banco Central não tem condições plenas de balizar o mercado cambial, evitando que fortes oscilações da taxa de câmbio acabem catapultando-a para uma máxi explosiva. A sistemática de trabalho do FMI é lenta e inadequada para o enfrentamento desse tipo de crise de liquidez, e as nossas reservas não são suficientes para dominar a especulação.
A seguinte lista de eventos "positivos" teria de ocorrer até o fim de março para evitar um cenário ainda mais grave de desorganização da economia: 1) o FMI e o governo precisariam chegar, logo, a um entendimento sobre o novo programa de ajuste de forma a viabilizar o seu exame e aprovação pelo "board", tornando possível o desembolso da parcela de US$ 9,5 bilhões no mais tardar no início de abril; 2) a Câmara de Deputados necessitaria aprovar a CPMF (votação que exige 3/5), condição "sine qua non" para o apoio do FMI; 3) os bancos internacionais precisariam auxiliar o BC a suprir o mercado de câmbio.
Essa terceira condicionante é difícil. Não há por parte dos bancos e investidores disposição em auxiliar o Brasil voluntariamente. Seria necessário que as nossas autoridades atuassem diretamente junto às grandes instituições que têm interesses já estabelecidos no país, demandando a sua colaboração. Nesse sentido, seria muito eficaz se o Departamento do Tesouro dos EUA ou o Fed induzissem os bancos a ampliar a oferta de cambiais e a recompor as linhas de crédito para o nosso comércio exterior, hoje reduzidas a apenas um terço do que eram antes da crise.
Apenas sob esse conjunto favorável de condições se poderia esperar do Banco Central a implementação de uma trajetória de recuo da maxidesvalorização, em direção a uma cotação próxima a R$ 1,70 por dólar. A hipótese de um "choque de credibilidade", aventada pelos economistas conservadores, a ser obtido por meio de uma radicalização do ajuste fiscal, parece tão irreal quanto voluntarista, num contexto em que a recessão será muito forte, implicando significativas perdas de receita tributária e previdenciária. Sem reduzir substancialmente a taxa de juros fica impossível diminuir o déficit público, ainda que se procure implementar cortes duros nas despesas públicas.
Uma demora adicional na obtenção de controle sobre a taxa de câmbio -além de abril- trará graves consequências. Com efeito, seria crucial firmar logo nos agentes econômicos a convicção de que a cotação do dólar cairá consistentemente no segundo e terceiro trimestres, de forma a impedir que a atual rodada de aumentos de preços se transforme num processo auto-alimentado. Os riscos de reindexação são altos e não devem ser subestimados se a taxa de câmbio persistir ao redor de R$ 2,00, oscilando em clima de forte incerteza. Uma significativa onda de remarcações "preventivas" já está em andamento, inclusive em bens "non tradeables". O grande desafio é justamente o de evitar que o aumento de preços dos bens "tradeables" se propague velozmente para os demais preços, recriando a indexação. O clima de incerteza favorece a propagação e precisaria ser revertido imediatamente para evitar que a inflação escape ao controle, problematizando a gestão da taxa de câmbio e da taxa de juros.
O governo, entretanto, nem governa, nem sequer parece capaz de influir sobre a formação de expectativas. Não há uma formulação estruturada para o futuro. Os ganhos da desvalorização não estão sendo capitalizados sob a forma de um projeto de desenvolvimento competitivo, suportado por um superávit comercial persistente. O desgaste da credibilidade do seu núcleo econômico explica apenas em parte esta abulia perigosa. Falta ao comandante pulso e franqueza para reconhecer o tamanho da crise e conceber as soluções correspondentes. A tônica vem sendo esconder o sol com a peneira, evadindo-se e minimizando-se a gravidade da situação.
Será necessário que a sociedade se mobilize e exija ação e firmeza. Também parece indispensável que surja, de um novo arco de alianças entre o setor empresarial e as entidades organizadas da sociedade, uma nova proposta de enfrentamento da crise que reabra o caminho para um projeto de desenvolvimento sólido, competitivo e socialmente justo.
² ²


Luciano Coutinho, 53, é professor titular do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp). Foi secretário-geral do Ministério da Ciência e Tecnologia (1985-88).



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.