São Paulo, sexta-feira, 28 de abril de 2006

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OPINIÃO ECONÔMICA

Um olhar mais profundo

LUIZ CARLOS MENDONÇA DE BARROS

Existem certas palavras que, em uma determinada língua, são muito mais expressivas que em outras, embora com o mesmo significado. Em alguns casos, essa força se realiza pela simples utilização, com uma pequena adaptação, da palavra estrangeira. É o caso por exemplo da palavra internet. Em outras situações, principalmente com palavras de menor uso popular e conteúdo mais sofisticado, somos obrigados a usar o nome estrangeiro pura e simplesmente.
Eu gosto muito da expressão inglesa "gaze", que quer dizer um olhar profundo e detalhado sobre os acontecimentos que presenciamos. Gaze não é simplesmente olhar, mas um entender, na sua profundidade, o que ocorre ao nosso redor. Meu primeiro contato com essa palavra aconteceu quando assisti a um filme maravilhoso chamado "Ulysses's Gaze". Procurando compreendê-la melhor descobri que na atividade profissional como economista, principalmente na minha maturidade, já a vinha utilizando sem saber.
Entender os fenômenos econômicos, dentro de um determinado contexto histórico, exige do analista essa capacidade de olhar com profundidade para o que está acontecendo ao seu redor. Vejamos o caso da economia brasileira nos dias de hoje. Vivemos um momento virtuoso, com a inflação controlada, um crescimento econômico elevado para os padrões históricos brasileiros, embora bem menor do que o de outros países emergentes, e uma melhora acentuada na renda dos segmentos mais pobres da sociedade brasileira. Podemos criticar, e meu leitor sabe que tenho feito isso neste espaço, a ausência de muitos ajustes que deveriam estar sendo feitos para aumentar ainda mais essa dinâmica. O desempenho do Brasil está muito aquém do potencial, mas o país está no caminho certo.
Já vemos os primeiros sinais de que a campanha eleitoral do presidente Lula será baseada na comparação entre seu governo e o período Fernando Henrique. E a mensagem que já se mostra clara é a de que seu governo é muito melhor do que o de seu antecessor. Talvez isso apareça para aqueles que apenas lancem um olhar distraído e superficial para os últimos três anos e meio. Mas para os que, como no filme "Ulisses's Gaze", procuram penetrar na profundidade dos acontecimentos recentes, o quadro é totalmente diverso.
O caminhar exitoso da economia brasileira, nos dias de Lula e de seu populismo tosco, ocorre por duas razões principais: um quadro conjuntural internacional de extraordinário vigor e uma política econômica herdada do seu antecessor. A primeira é fortuita e portanto independente do mérito do nosso presidente atual. Já a segunda, que permite que nos beneficiemos dessa situação favorável, foi criada por ação de um presidente com visão histórica e capacidade política de mudar os rumos do país. Foram as reformas e as privatizações realizadas nos anos FHC, junto com a abertura comercial organizada, que permitem ao Brasil beneficiar-se do momento que o mundo vive hoje.
O nosso presidente tem associado à sua gestão as mudanças para melhoria na qualidade de vida do brasileiro de menor renda. Mas o que não diz é que o aumento do poder de compra do salário mínimo e das transferências via o programa Bolsa-Família -também criado no governo de Fernando Henrique- é explicado principalmente pela valorização cambial, que influencia os preços agrícolas. A valorização do real contribuiu para forte deflação desses preços nos últimos 12 meses.
O valor do novo salário mínimo, medido em termos de relação com o valor da cesta básica, é hoje cerca de 60% maior do que o que vigorava há 12 meses. Isso ocorre apesar de um aumento nominal de apenas 17% neste mesmo período. A diferença corresponde aos efeitos da valorização do real. Ora, a queda da cotação do dólar ocorreu porque o Brasil gera hoje um excesso próximo a US$ 30 bilhões anuais em sua balança de pagamentos. E essa sobra é fruto da expansão expressiva de nossas exportações gerada por uma política de abertura comercial iniciada de forma sistemática nos anos FHC.
E para mostrar que o discurso atual do presidente Lula é ainda mais leviano, basta dizer que durante décadas ele e seu partido político defenderam a idéia que exportar era uma forma de diminuir a renda dos brasileiros. No caso dos alimentos, isso até era considerado por eles um crime de lesa-pátria. Temos em nossa língua uma palavra que expressa bem o que está sendo praticado pelo presidente: oportunismo.


Luiz Carlos Mendonça de Barros, 63, engenheiro e economista, é economista-chefe da Quest Investimentos. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações (governo FHC).
E-mail - lcmb2@terra.com.br


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