São Paulo, sábado, 28 de setembro de 2002

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LUÍS NASSIF

Invasão de privacidade

A escola é solene, há décadas forma os melhores administradores do país. Como muitas outras universidades e faculdades de São Paulo, os alunos da Fundação Getúlio Vargas organizam suas festas periódicas, nas quais se usa o "cafofo" -local reservado para os "amassos" dos convidados. Na última festa, um dos presentes fotografou cenas de juventude explícita e as colocou na internet. A nova mídia permitiu que as fotos circulassem, e a velha mídia deu a devida repercussão, conferindo ao caso dimensão nacional.
Desde então, o episódio deflagrou uma discussão -interna, na escola, e externa, na mídia- que é sumamente representativa da crise de valores que assola a sociedade contemporânea. Na faculdade, no início perdeu-se o rumo. Houve discussões acaloradas entre os professores, alguns considerando ter havido atentado ao pudor da parte dos jovens fotografados.
Como ambiente racional que é, com o tempo a FGV constatou o óbvio. Os jovens fizeram o que todos os jovens contemporâneos fazem em festinhas de alguns anos para cá. Flagrada nas fotos, aliás, uma aluna de nome Patrícia colocou uma página na internet, desancando esse moralismo anacrônico. O crime em questão foi o da quebra da privacidade. E aí se chega ao ponto da questão: quais os limites da privacidade na sociedade contemporânea, não apenas dentro do ambiente acadêmico mas da própria mídia?
Há um princípio que, em geral, é mal compreendido. Segundo ele, toda figura pública não teria direito à privacidade, por ser pública. O "cafofo" mereceu a repercussão dada porque os alunos pertenciam a uma instituição de reputação nacional -e, portanto, com imagem pública-, a FGV.
Há que rediscutir esse conceito. A imprensa privilegia a divulgação da privacidade de pessoas públicas, porque dá leitura. Como a imprensa é o fiscal da sociedade, muitas vezes ela se concede o direito de avançar sobre a privacidade alheia, em nome da eterna vigilância. Há uma pequena porém fundamental diferença entre o papel de fiscal da sociedade e o de "voyeur" de celebridades. A mídia torna-se fiscal quando revela algum aspecto da vida privada do cidadão que possa ter implicações sobre sua atividade pública. Quando avança além disso, investe contra um dos direitos fundamentais da civilização: o direito à privacidade.
Nos anos 80, por exemplo, o regime militar utilizou cenas de motel para abater parlamentares da oposição. Depois, explorou a doença da mulher de um senador (era cleptomaníaca) para investir contra ele. Teve o respaldo de uma grande publicação.
Nos últimos anos, o assalto à privacidade alheia foi praticado indistintamente, por jornalistas, políticos, procuradores, funcionários da máquina, procurando atingir adversários políticos ou meramente se promover à custa de celebridades. O início desse processo está na campanha do impeachment, quando, à falta de temas novos, se permitiu a divulgação de um festival surreal de suspeitas escabrosas.
No episódio da CPI dos Precatórios, por exemplo, os senadores solicitavam a quebra do sigilo telefônico de suspeitos. As companhias telefônicas mandavam as listas em caixas lacradas, sabendo que a divulgação dos dados configurava crime previsto na Constituição. Mal chegavam às mãos de senadores, as listas eram imediatamente repassadas para jornalistas. A senadora gaúcha Maria Emília se cansou de proceder assim, e nem sequer houve a ameaça de cassação por quebra de decoro. O Senado só reagiu quando a privacidade dos seus foi invadida, no episódio da votação da cassação de um dos senadores.
No episódio das contas CC-5 de Foz do Iguaçu, a primeira atitude do procurador incumbido das investigações foi passar o nome de celebridades que fizeram remessas para o exterior -sem apurar se a remessa era legal ou ilegal. Sobre os crimes, doleiros e narcotráfico, pouco avançou.
Somem-se os "reality shows" da televisão e se verá que tudo virou show. O que poderá significar essa quebra de privacidade em um governo que não coloque limites à atuação de procuradores, fiscais e bancários?

E-mail - lnassif@uol.com.br


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