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LUÍS NASSIF
Invasão de privacidade
A escola é solene, há décadas forma os melhores administradores do país. Como
muitas outras universidades e
faculdades de São Paulo, os alunos da Fundação Getúlio Vargas organizam suas festas periódicas, nas quais se usa o "cafofo" -local reservado para os
"amassos" dos convidados. Na
última festa, um dos presentes
fotografou cenas de juventude
explícita e as colocou na internet. A nova mídia permitiu que
as fotos circulassem, e a velha
mídia deu a devida repercussão, conferindo ao caso dimensão nacional.
Desde então, o episódio deflagrou uma discussão -interna,
na escola, e externa, na mídia- que é sumamente representativa da crise de valores que
assola a sociedade contemporânea. Na faculdade, no início
perdeu-se o rumo. Houve discussões acaloradas entre os professores, alguns considerando
ter havido atentado ao pudor
da parte dos jovens fotografados.
Como ambiente racional que
é, com o tempo a FGV constatou
o óbvio. Os jovens fizeram o que
todos os jovens contemporâneos
fazem em festinhas de alguns
anos para cá. Flagrada nas fotos, aliás, uma aluna de nome
Patrícia colocou uma página na
internet, desancando esse moralismo anacrônico. O crime em
questão foi o da quebra da privacidade. E aí se chega ao ponto
da questão: quais os limites da
privacidade na sociedade contemporânea, não apenas dentro
do ambiente acadêmico mas da
própria mídia?
Há um princípio que, em geral, é mal compreendido. Segundo ele, toda figura pública
não teria direito à privacidade,
por ser pública. O "cafofo" mereceu a repercussão dada porque os alunos pertenciam a
uma instituição de reputação
nacional -e, portanto, com
imagem pública-, a FGV.
Há que rediscutir esse conceito. A imprensa privilegia a divulgação da privacidade de pessoas públicas, porque dá leitura.
Como a imprensa é o fiscal da
sociedade, muitas vezes ela se
concede o direito de avançar sobre a privacidade alheia, em
nome da eterna vigilância. Há
uma pequena porém fundamental diferença entre o papel
de fiscal da sociedade e o de "voyeur" de celebridades. A mídia
torna-se fiscal quando revela algum aspecto da vida privada do
cidadão que possa ter implicações sobre sua atividade pública. Quando avança além disso,
investe contra um dos direitos
fundamentais da civilização: o
direito à privacidade.
Nos anos 80, por exemplo, o
regime militar utilizou cenas de
motel para abater parlamentares da oposição. Depois, explorou a doença da mulher de um
senador (era cleptomaníaca)
para investir contra ele. Teve o
respaldo de uma grande publicação.
Nos últimos anos, o assalto à
privacidade alheia foi praticado
indistintamente, por jornalistas, políticos, procuradores, funcionários da máquina, procurando atingir adversários políticos ou meramente se promover à custa de celebridades. O
início desse processo está na
campanha do impeachment,
quando, à falta de temas novos,
se permitiu a divulgação de um
festival surreal de suspeitas escabrosas.
No episódio da CPI dos Precatórios, por exemplo, os senadores solicitavam a quebra do sigilo telefônico de suspeitos. As
companhias telefônicas mandavam as listas em caixas lacradas, sabendo que a divulgação
dos dados configurava crime
previsto na Constituição. Mal
chegavam às mãos de senadores, as listas eram imediatamente repassadas para jornalistas. A senadora gaúcha Maria
Emília se cansou de proceder
assim, e nem sequer houve a
ameaça de cassação por quebra
de decoro. O Senado só reagiu
quando a privacidade dos seus
foi invadida, no episódio da votação da cassação de um dos senadores.
No episódio das contas CC-5
de Foz do Iguaçu, a primeira
atitude do procurador incumbido das investigações foi passar o
nome de celebridades que fizeram remessas para o exterior
-sem apurar se a remessa era
legal ou ilegal. Sobre os crimes,
doleiros e narcotráfico, pouco
avançou.
Somem-se os "reality shows"
da televisão e se verá que tudo
virou show. O que poderá significar essa quebra de privacidade
em um governo que não coloque limites à atuação de procuradores, fiscais e bancários?
E-mail - lnassif@uol.com.br
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