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São Paulo, domingo, 28 de dezembro de 2003

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FOGO AMIGO

Para o presidente do BNDES, gestão do ministro da Fazenda é "necessária, mas não suficiente" para elevar investimentos

Lessa diz não acreditar em apostas de Palocci

Sergio Lima - 29.set.03/Folha Imagem
Carlos Lessa, que disse não concordar com a aposta na cooperação do investimento estrangeiro


GUILHERME BARROS
EDITOR DO PAINEL S.A.

Durante o ano, o presidente do BNDES (Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social), Carlos Lessa, 67, foi um dos principais alvos de críticas pelas decisões polêmicas que tomou à frente do banco. Seu nome esteve em quase todas as listas divulgadas pela imprensa, e até hoje nunca confirmadas, de prováveis substituídos pelo governo na reforma ministerial.
Na semana passada, em meio a reuniões do conselho de administração do banco, negociações com a AES para o fechamento do acordo de renegociação da dívida e ainda uma festa de fim de ano dos funcionários do BNDES, Lessa recebeu a Folha para fazer uma espécie de desabafo sobre sua gestão e sobre sua visão de economia.
Confiante, ele disse que está na presidência do banco por ter sido convidado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. "Eu estou aqui pura e simplesmente porque o presidente da República me convidou e, até onde eu posso perceber, até hoje ele não manifestou em nenhum momento desagrado com as coisas que eu fiz ou sugeri", afirmou.
Lessa não nega divergências de opiniões com o ministro da Fazenda, Antonio Palocci Filho, sobre a condução da política macroeconômica. Apesar de considerar Palocci afável e cordial, Lessa diz que não acredita nas apostas que estão sendo feitas pelo governo na política macroeconômica. "O ministro da Fazenda está fazendo uma política necessária, mas não suficiente, para empurrar para cima a taxa de investimento da economia", afirmou.
Suas posições divergentes sobre a condução da política macroeconômica, segundo Lessa, não são ouvidas pelo primeiro escalão do governo. "Não faço parte do escalão superior. Eu sou daqueles que dizem o que pensam com muita tranquilidade, mas não tenho tido oportunidade de participar das grandes discussões", diz.
A seguir, a entrevista:
 

Folha - Como o sr. define o ano de 2003?
Carlos Lessa -
O ano de 2003 foi muito pesado. O nosso primeiro grande esforço foi o de recuperar a organização. A visão de banco de desenvolvimento ficou muito esgarçada ao longo dos anos 90. O BNDES tinha se tornado um típico banco de investimento. Um banco de investimento é, diga-se de passagem, uma instituição muito necessária, muito meritória e muito importante, mas um banco de desenvolvimento, como o BNDES, tem outras funções. Um banco de desenvolvimento pensa numa visão de futuro para a economia e procura selecionar protagonistas que realizem ações para levar a sociedade em direção àquele futuro. Um dos argumentos poderosos de um banco de desenvolvimento é exatamente o de renunciar ao seu lucro para viabilizar esse projeto.

Folha - A que o sr. atribui a saraivada de críticas à sua gestão?
Lessa -
Há determinadas críticas que foram feitas à minha administração que eu respeito. São críticas que nascem de uma visão de mundo diferente da minha. Como eu sou uma pessoa perfeitamente democrata, aceito posições contraditórias. Isso é absolutamente legítimo. Agora, houve uma quantidade enorme de críticas, perfídias, insinuações, acusações infundadas que são impressionantes. A que eu atribuo isso? É muito difícil fazer acusações. Não costumo acusar ninguém sem ter provas, mas creio que devo ter mexido com fortes interesses de fora do banco. E, dentro do banco mesmo, a reestruturação que fizemos gerou uma fração expressiva de pessoas inconformadas.

Folha - Mas o sr. também teve atritos com Palocci.
Lessa -
Não é questão de atrito. Eu não tenho nenhum problema especial com o Palocci. Eu o acho até uma pessoa muito afável, muito cordial e de trato humano muito agradável. Eu só não concordo com certas apostas que estão sendo feitas. Uma delas, por exemplo, é a de apostar na cooperação do investimento estrangeiro. Eu não acredito que a cooperação estrangeira venha a ser expressiva. Eu tenho convicção de que o investimento direto do exterior só ocorre quando a economia está dinamizada. Não é o capital estrangeiro que dá a partida para a dinamização da economia. Se o Brasil voltar a crescer, eu não tenho a menor dúvida de que vamos voltar a ter investimentos produtivos do exterior.

Folha - Para o sr., a opção de política econômica está errada?
Lessa -
O ministro da Fazenda está fazendo uma política necessária, mas não suficiente, para empurrar para cima a taxa de investimento da economia. Para elevar a taxa de investimento, que é aquilo de que o país precisa para ter um crescimento sustentável, é necessária uma articulação das ações internas da sociedade. E, na minha visão, o fundamental é tocar para a frente o programa de infra-estrutura. Para isso, é necessário, em primeiro lugar, que a taxa de juros caia. É necessário também que o PPP seja operacionalizado com competência. O seu programa de infra-estrutura é fundamental. Para crescer, os países precisam se articular e, quando são bem-sucedidos, isso atrai o investimento externo. O investimento de fora, por si só, não faz nenhum país crescer. Como condição necessária, é evidente que a taxa de inflação tem que estar baixa, o risco Brasil tem que se reduzir e temos também que ter uma situação cambial cada vez mais confortável. Tudo isso é absolutamente correto, mas não é suficiente para a retomada do crescimento. Para crescer é necessário um esforço adicional. É preciso dar consequência a decisões que a Presidência da República já tomou. Quando a Presidência da República fixou o programa de infra-estrutura de 2004 a 2007, ela tomou uma decisão estratégica para o Brasil crescer. Mas isso precisa se converter em realidade. O BNDES está pronto para executar esse programa.

Folha - E como atrair investimentos privados?
Lessa -
A taxa de juros tem que cair mais. Eu diria a você que a partir de 8% ao ano de juros reais eu já começaria a ficar animado. Quanto menor a taxa, mais fácil vai ser a retomada.

Folha - Não está demorando a ocorrer essa queda dos juros?
Lessa
- Eu não opino sobre política macroeconômica. Eu tenho que espiar a política macroeconômica e deixar o BNDES preparado para ser o grande instrumento do desenvolvimento brasileiro. E ele está pronto para isso. Nós resolvemos os principais esqueletos do passado. Ainda tem alguns pela frente, como o da Cemig, mas os principais a gente enfrentou.

Folha - As metas elevadas de superávit primário não são empecilhos para os investimentos?
Lessa -
O superávit primário é um pouco excessivo, mas eu não vou discutir o superávit primário. O meu olhar está concentrado na taxa de juros. Se a taxa de juros cair, a necessidade de superávit primário também vai cair muito rapidamente, além de reanimar decisões de investimentos privados. A queda dos juros também dará condições de reorganizar o padrão de financiamento e desenvolvimento da economia. O mercado de capitais poderia voltar a ser robusto.

Folha - O modelo que o sr. defende não poderia trazer mais inflação?
Lessa -
Todo e qualquer macroeconomista te dirá que é muito difícil sustentar o crescimento a longo prazo com preços estáveis. Há sempre uma sombra inflacionária que acompanha uma trajetória de crescimento. Os preços não têm a mesma flexibilidade para baixo do que numa recomposição para cima, mas essa trajetória dos preços será subordinada e controlável.

Folha - O sr. tem defendido esse ponto de vista em suas reuniões com o governo?
Lessa -
Não faço parte do escalão superior. Eu sou daqueles que dizem o que pensam com muita tranquilidade, mas não tenho tido oportunidade de participar das grandes discussões.

Folha - Qual é sua previsão para 2004?
Lessa -
Acho que 2004 vai ser o ano do crescimento. Eu acho que vai ser retomado o crescimento, sim. Por uma série de razões, mas a principal é que eu acho que a taxa de juros vai continuar caindo. Se podiam ter feito um pouco mais rapidamente, podiam.

Folha - Os economistas Maria da Conceição Tavares e Celso Furtado o ajudam a continuar no cargo?
Lessa -
Maria da Conceição Tavares é minha irmã, nós somos muito amigos. Conceição fez sondagens a mim sobre a possibilidade de assumir o BNDES logo depois de Lula ter vencido as eleições, e eu disse a ela que queria continuar na universidade. Eu tinha sido eleito reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que é a mais antiga e mais importante universidade pública federal do país, com 85% dos votos dos professores, alunos e funcionários. Foi uma eleição inédita na história da universidade brasileira. Eu estava investido de uma legitimidade completa. Até que eu fui convidado pelo presidente Lula em termos que eu não podia nunca recusar. Não fui indicado nem por partidos políticos nem por movimentos sociais. Que a professora Maria da Conceição Tavares e o ministro Celso Furtado acham que eu sou uma pessoa qualificada é verdade. Que eles acham que eu preencheria o cargo, acho que sim e eu também acho que preencho o cargo. Agora, eu não estou aqui porque Conceição ou Celso Furtado estejam atuando politicamente para me sustentar. Eu estou aqui pura e simplesmente porque o presidente da República me convidou e, até onde eu posso perceber, até hoje ele não manifestou em nenhum momento desagrado com as coisas que eu fiz ou sugeri.

Folha - A negociação com a AES foi sua pior experiência no BNDES?
Lessa -
A AES é uma coisa muito difícil. Quando chegamos aqui, nós vimos que essa era uma operação terrivelmente imprecisa, tecnicamente muito malfeita. A operação, que envolvia mais de US$ 1 bilhão de recursos do BNDES, foi montada debaixo de garantias que eram empresas de papel de propriedade de firmas com sede em paraísos fiscais, nas ilhas Cayman. Não havia uma garantia corporativa da AES nem fiança bancária nem nada. Ou seja, um contrato muito malfeito, e essa dívida era rolada todo ano. Eu procurei o presidente da República, expus a situação da carteira que tinha encontrado aqui, e ele me deu a missão de negociar com a AES novas condições do empréstimo. A batalha começou em janeiro e perdura até hoje. Se não tivéssemos fechado um acordo, eu teria produzido o maior prejuízo da história bancária do país em um ano.

Folha - O sr. tem uma explicação para esses contratos terem sido tão malfeitos?
Lessa -
Não é pelo fato de a empresa ser uma multinacional que ela é uma parceira adequada para o Brasil. Aliás, há multinacionais adequadas e multinacionais inadequadas. Eu, por exemplo, como presidente do banco, não concordo em contratar operações em que a matriz não dê garantias firmes. Nas operações que nós fizemos até agora, nenhuma delas foi contratada sem garantias reais ou fiança bancária. Eu tenho responsabilidade bancária, apesar de alguém ter me acusado de não ter experiência por ser professor e não banqueiro.

Folha - E a operação da Vale?
Lessa -
A Vale do Rio Doce foi uma operação impecável. Se não me engano, em agosto deste ano, tomamos conhecimento de que a Vale estava comprando a participação da Mitsui na Caemi e, por sua vez, a Mitsui estava comprando as ações da Bradespar na Vale. Nós tínhamos o direito de preferência. Na ocasião, quis exercer esse direito, mas aí recebi uma orientação superior para não interferir na negociação.

Folha - De quem foi essa orientação superior?
Lessa -
Não vou dizer. O argumento foi que a interrupção dessa negociação prejudicaria as relações do Brasil com o Japão. Só que, a partir desse momento, nós passamos a examinar com muita atenção a Vale do Rio Doce e sua relação com o desenvolvimento brasileiro. Por quê? Porque a Vale do Rio Doce é muito importante para o desenvolvimento do Brasil. Ela é a segunda maior empresa brasileira, a maior exportadora, a maior geradora de divisas do país e a maior empresa de logística. Ou seja, ela é uma campeã nacional. Nesse meio tempo, a InvestVale resolveu vender as suas ações, nos procurou e nós decidimos exercer nosso direito. O que nos disseram foi que a Mitsui ficou incomodada com isso. A Mitsui não sabia da existência dessa cláusula de direito de preferência do BNDES no caso de uma venda das ações da InvestVale. Se a Mitsui comprasse a InvestVale, ela ia ter mais de 25% do capital da Valepar e passaria a ter direito de veto na empresa. A Vale escaparia do controle de mãos brasileiras. Como eu já tinha percebido que a idéia do comando da República é que a Vale continuasse sendo uma empresa importante para o desenvolvimento brasileiro, eu simplesmente exerci o direito de preferência das ações da InvestVale e ponto.

Folha - O sr. garantiu que a Vale continuasse nas mãos de empresas nacionais.
Lessa -
Garanti a soberania brasileira. Quando houve a operação da Vale, chegaram até a dizer que nós tínhamos feito um mau negócio por ter comprado a ação no auge. Em primeiro lugar, o ágio que nós praticamos na compra das ações da InvestVale foi muito pequeno, muito menor do que o que a Mitsui pagou para comprar as ações da Bradespar na Valepar. Mas, independentemente disso, aconteceu uma coisa que não estava nos nossos cálculos. O balanço da Vale veio excepcional, e suas ações não param de subir. Tiveram uma valorização brutal nesses últimos 30 dias. E isso nem passou pela nossa cabeça.

Folha - O sr. pretende interferir nas decisões da Vale?
Lessa -
Claro, nós somos acionistas e temos que preservar os interesses da nossa companhia. Nós achamos, por exemplo, que está tudo pronto para construir, em Carajás, pelo menos uma siderúrgica do porte da Belgo Mineira. Recentemente, soubemos que a Vale se associou a um grande comprador de ferro gusa internacional para fazer uma operação de produção de gusa lá naquela região. Isso é uma coisa que eu, pessoalmente, nunca teria feito como presidente da Vale.

Folha - A capitalização do banco, que o sr. queria, não saiu.
Lessa -
Eu não preciso mais da capitalização para cumprir os R$ 47,3 bilhões do orçamento programado para 2004. O que o Ministério da Fazenda aprovou agora já me dá condições de executar esse orçamento. Eu gostaria muito, no entanto, de ser capitalizado para poder ficar mais robusto.

Folha - O BNDES vai dar apoio à mídia?
Lessa -
A mídia trouxe para nós, através de suas quatro entidades, um pleito que está sendo examinado e nós vamos levar nossas conclusões à decisão da República no começo de janeiro. O meu voto é favorável. Acho que nenhum país pode existir sem uma mídia forte, que produza conteúdos próprios. Só que não sou eu que vou decidir sozinho essa questão. Mas eu acho que o governo sabe da importância da mídia para a democracia.

Folha - O sr. já tem uma previsão de quanto poderia ser a ajuda para a mídia?
Lessa -
Não, mas o pleito que nos chegou era um pouco robusto demais.



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