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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
Vulnerabilidade nua
LUCIANO COUTINHO
Numa economia vulnerável com elevado déficit externo em transações correntes
(entre 4% e 4,5% do PIB), a volatilidade da taxa de câmbio tem
efeito maligno (desatando tensões inflacionárias) sempre que o
ingresso de capitais se torna incerto. Nos últimos dois anos, fluxos maciços de investimento direto estrangeiro, na escala de US$
30 bilhões por ano, forneceram
conforto ao financiamento do déficit, permitindo que o Banco
Central pudesse vir baixando
cautelosamente a taxa de juros,
deixando a taxa de câmbio flutuar sem maiores transtornos.
Nas últimas semanas, a incerteza
a respeito da Argentina e um esmorecimento do influxo de investimentos diretos deixaram evidente a fragilidade da política
monetária de metas de inflação
com flutuação cambial.
Depois de 21 meses de crescimento, o aumento da utilização
da capacidade produtiva, a paulatina redução do desemprego
com leve aumento dos salário nominais e a reativação do crédito
tornaram a formação de preços
muito mais sensível às pressões do
câmbio. Na atual conjuntura, o
coeficiente de transmissão das variações cambiais para a taxa de
inflação tende a crescer e, por isso,
a flutuação com tendência à depreciação da taxa câmbio se torna altamente inconveniente. A
subida da taxa de câmbio, em
poucas semanas, para mais de R$
2,20 por dólar representa uma
tensão adicional sobre os preços
nos próximos meses que se não for
milagrosamente revertida logo
será fatalmente transmitida para
os índices de inflação, causando
problemas ao cumprimento das
metas e realimentando a instabilidade das expectativas.
O momento é delicado. O cenário internacional persiste envolto
em turbulências que tendem a
afetar negativamente os fluxos de
capitais. Devido à queda do investimento privado, a aterrissagem da economia americana se
defronta com riscos que não serão
facilmente atenuados, ainda que
o Fed reduza reiteradamente a
taxa de juros. Na Europa, ao contrário, o BCE (Banco Central Europeu) vem adotando uma política conservadora, que ignora o perigo de um desaquecimento mundial e mira apenas a inflação passada. Nesta semana, o BCE perdeu mais uma oportunidade
-decidiu manter estável a sua
taxa básica quando deveria tê-la
baixado para defletir o movimento de desaceleração das economias da zona do euro. O Japão,
como é sabido, persiste atolado
em uma recessão endêmica.
A tudo isso agregue-se a situação precária da Argentina. O superministro Cavallo vinha conseguindo ganhar tempo, semana a
semana, mas a sua inoportuna
proposta de inclusão do euro, interferindo na paridade peso-dólar, agravou a falta de confiança
na sustentabilidade do sistema de
conversibilidade. Por isso, é dificílima a reativação da economia
argentina. Empresas e consumidores têm evitado fazer novas dívidas em dólares, temendo uma
mudança cambial. Não por acaso
os setores mais retraídos são o automobilístico e o da construção civil (altamente dependentes de
crédito dolarizado). Há um estado de desconfiança que se manifesta numa preferência absoluta
por liquidez em dólar e, ipso facto,
restringe o investimento produtivo e o consumo de bens duráveis.
De outro lado, submetido ao programa do FMI, o governo argentino não tem margem de manobra
para aumentar compensatoriamente o gasto e o investimento
público.
Sem que se articule imediatamente uma substancial operação
de apoio, por intermédio do FMI,
a situação da Argentina ficará insustentável. O governo Bush, novato e confuso, tem relutado em
sancionar uma ação pró-ativa do
Fundo. Há, por isso, um risco real
de colapso do peso. Porém, o medo de uma moratória traumática
para a banca internacional talvez
leve ao fechamento de um acordo
ao longo deste fim de semana. O
FMI e o Tesouro terão que induzir os grandes bancos a alongar
voluntariamente o perfil da dívida sem exigências vexatórias. Se
tudo isso for feito, o "teste" ficará
postergado por mais algum tempo -dependendo da problemática reativação da economia vizinha.
Mais uma vez ficou desnudada
a fragilidade da política brasileira. O BC terá que escolher um novo "mix" que combine juros mais
altos e algum nível de intervenção
sobre o mercado de câmbio. Obviamente seria preferível limitar
a depreciação da taxa de câmbio
por meio de intervenções diretas e
indiretas, mas o nível das reservas
é pouco confortável (US$ 34 bilhões). Se as turbulências externas
e, particularmente, a crise argentina puderem ser plausivelmente
interpretadas como passageiras, a
melhor opção seria a de intervir
mais sobre o mercado de câmbio
e subir menos a taxa de juros. Caso contrário, só restará a opção de
impor um novo choque de juros e
de crédito, levando a economia
outra vez à recessão. Essa vulnerabilidade amarga torna imperdoável ao atual governo ter tolerado negligentemente a persistência do elevado déficit externo sem
tomar medidas firmes de estimulo às exportações e de substituição
de importações.
Luciano Coutinho, 54, é professor titular do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp). Foi secretário-geral do Ministério da Ciência e
Tecnologia (1985-88).
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