São Paulo, domingo, 29 de abril de 2001

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Vulnerabilidade nua

LUCIANO COUTINHO

Numa economia vulnerável com elevado déficit externo em transações correntes (entre 4% e 4,5% do PIB), a volatilidade da taxa de câmbio tem efeito maligno (desatando tensões inflacionárias) sempre que o ingresso de capitais se torna incerto. Nos últimos dois anos, fluxos maciços de investimento direto estrangeiro, na escala de US$ 30 bilhões por ano, forneceram conforto ao financiamento do déficit, permitindo que o Banco Central pudesse vir baixando cautelosamente a taxa de juros, deixando a taxa de câmbio flutuar sem maiores transtornos. Nas últimas semanas, a incerteza a respeito da Argentina e um esmorecimento do influxo de investimentos diretos deixaram evidente a fragilidade da política monetária de metas de inflação com flutuação cambial.
Depois de 21 meses de crescimento, o aumento da utilização da capacidade produtiva, a paulatina redução do desemprego com leve aumento dos salário nominais e a reativação do crédito tornaram a formação de preços muito mais sensível às pressões do câmbio. Na atual conjuntura, o coeficiente de transmissão das variações cambiais para a taxa de inflação tende a crescer e, por isso, a flutuação com tendência à depreciação da taxa câmbio se torna altamente inconveniente. A subida da taxa de câmbio, em poucas semanas, para mais de R$ 2,20 por dólar representa uma tensão adicional sobre os preços nos próximos meses que se não for milagrosamente revertida logo será fatalmente transmitida para os índices de inflação, causando problemas ao cumprimento das metas e realimentando a instabilidade das expectativas.
O momento é delicado. O cenário internacional persiste envolto em turbulências que tendem a afetar negativamente os fluxos de capitais. Devido à queda do investimento privado, a aterrissagem da economia americana se defronta com riscos que não serão facilmente atenuados, ainda que o Fed reduza reiteradamente a taxa de juros. Na Europa, ao contrário, o BCE (Banco Central Europeu) vem adotando uma política conservadora, que ignora o perigo de um desaquecimento mundial e mira apenas a inflação passada. Nesta semana, o BCE perdeu mais uma oportunidade -decidiu manter estável a sua taxa básica quando deveria tê-la baixado para defletir o movimento de desaceleração das economias da zona do euro. O Japão, como é sabido, persiste atolado em uma recessão endêmica.
A tudo isso agregue-se a situação precária da Argentina. O superministro Cavallo vinha conseguindo ganhar tempo, semana a semana, mas a sua inoportuna proposta de inclusão do euro, interferindo na paridade peso-dólar, agravou a falta de confiança na sustentabilidade do sistema de conversibilidade. Por isso, é dificílima a reativação da economia argentina. Empresas e consumidores têm evitado fazer novas dívidas em dólares, temendo uma mudança cambial. Não por acaso os setores mais retraídos são o automobilístico e o da construção civil (altamente dependentes de crédito dolarizado). Há um estado de desconfiança que se manifesta numa preferência absoluta por liquidez em dólar e, ipso facto, restringe o investimento produtivo e o consumo de bens duráveis. De outro lado, submetido ao programa do FMI, o governo argentino não tem margem de manobra para aumentar compensatoriamente o gasto e o investimento público.
Sem que se articule imediatamente uma substancial operação de apoio, por intermédio do FMI, a situação da Argentina ficará insustentável. O governo Bush, novato e confuso, tem relutado em sancionar uma ação pró-ativa do Fundo. Há, por isso, um risco real de colapso do peso. Porém, o medo de uma moratória traumática para a banca internacional talvez leve ao fechamento de um acordo ao longo deste fim de semana. O FMI e o Tesouro terão que induzir os grandes bancos a alongar voluntariamente o perfil da dívida sem exigências vexatórias. Se tudo isso for feito, o "teste" ficará postergado por mais algum tempo -dependendo da problemática reativação da economia vizinha.
Mais uma vez ficou desnudada a fragilidade da política brasileira. O BC terá que escolher um novo "mix" que combine juros mais altos e algum nível de intervenção sobre o mercado de câmbio. Obviamente seria preferível limitar a depreciação da taxa de câmbio por meio de intervenções diretas e indiretas, mas o nível das reservas é pouco confortável (US$ 34 bilhões). Se as turbulências externas e, particularmente, a crise argentina puderem ser plausivelmente interpretadas como passageiras, a melhor opção seria a de intervir mais sobre o mercado de câmbio e subir menos a taxa de juros. Caso contrário, só restará a opção de impor um novo choque de juros e de crédito, levando a economia outra vez à recessão. Essa vulnerabilidade amarga torna imperdoável ao atual governo ter tolerado negligentemente a persistência do elevado déficit externo sem tomar medidas firmes de estimulo às exportações e de substituição de importações.


Luciano Coutinho, 54, é professor titular do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp). Foi secretário-geral do Ministério da Ciência e Tecnologia (1985-88).



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