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LUÍS NASSIF
Os clássicos da marcha-rancho
A marcha-rancho foi um
dos ritmos prediletos da minha juventude e, acredito, da infância, juventude e maturidade
de todas as gerações de brasileiros. Com sua marcação pontuada, mas sem a rapidez buliçosa
da marchinha e do frevo, é a música para os momentos mais líricos, para as namoradas mais
curtidas, para o fim de noite,
quando a madrugada lança seus
primeiros raios de sol e a gente
entoa nosso hino de todas as manhãs: "Já vem raiando a madrugada / acorda, que lindo / toda a
tristeza está sorrindo / pelas luzes
da manhã / se abrindo nas cores
do céu / O véu das nuvens que esvoaça / que passa pela estrela a
morrer / parece nos dizer / que
não existe beleza maior / do que
o amanhecer", de Vinícius e Ary
Barroso, cantada por Carlos
Lyra.
Aprendi o "Rancho das Flores"
em Santa Rita do Sapucaí, no
curto semestre em que tentei ser
técnico em eletrônica e voltei
boêmio. A segunda parte da música permite um contracanto lindo com "Cidade Maravilhosa",
de André Filho.
Se os anos 30 marcam a primeira fase de ouro do rancho, foi
nos anos 60 que ele teria seu segundo grande momento, consolidando a sua redescoberta nos
anos 50. A bossa nova já deixara
seu legado modernizante e havia
uma espécie de releitura da música brasileira, já sob novo filtro
estético. Por sua vez, os festivais
da Record, principalmente por
meio de Chico, Vandré e Edu,
empreendiam um mergulho nas
raízes da música urbana brasileira, recuperando vários ritmos.
Um pouco antes, creio que ainda no governo JK, Tom Jobim e
Vinícius haviam composto outro
clássico do gênero com um primo
irmão da marcha-rancho, um
frevo-rancho, um hino extraordinário de amor ao país: "Vem,
vamos dançar ao sol / vem, a
banda vai passar / vem ouvir o
toque dos clarins anunciando / o
carnaval e vão brilhando seus
metais", que virou uma espécie
de paradigma para os ranchos
que seriam perpetrados por seus
filhos musicais.
Obviamente, desde os primeiros acordes os clássicos das marchas-ranchos haviam se integrado ao nosso repertório: o maior
deles, "As Pastorinhas", de Noel e
João de Barro, depois "Pequenino Grão de Areia" e, especialmente, "Estão Voltando as Flores", de Paulo Soledade, clássicos
dos anos 50.
Mas quem pensava que o melhor da marcha-rancho já havia
sido produzido se maravilhava a
cada ano com novos clássicos
que brotavam dos violões de nossos gênios. Como a extraordinária "Suíte dos Pescadores", de
Dorival Caymmi, lançada naquele período em um dos grandes shows da década, que revelou
o Quarteto em Cy. O ponto alto
da suíte era a marcha-rancho
"Minha jangada vai sair pro mar
/ vou trabalhar, meu bem querer".
Os bossa-novistas e pós-bossa
não deixaram por menos. Ainda
nos anos 60, com Vinícius, Carlos
Lyra compôs outro clássico,
"Marcha da Quarta-Feira de
Cinzas" ("Acabou nosso carnaval / ninguém ouve cantar canções / ninguém passa mais / cantando, sorrindo, e nos corações /
saudades e cinzas foi o que restou"). Pouco depois, Chico Buarque compôs uma das músicas
mais cantadas pela juventude
universitária da época, o "Rancho das Mascaradas" ("Quem é
você / adivinha se gostas de
mim"), em dueto com a belíssima Odete Lara.
Naquele mesmo período, nos
veios do primo irmão, o frevo-rancho, Edu compôs o belíssimo
"Hoje não tem dança / não tem
mais menina de trança / nem
cheiro de lança no ar". E Geraldo Vandré consagrou-se com o
"Olha que a vida é tão linda / e
se perde em tristezas, assim, / segue teu rancho cantando / essa
tua esperança, sem fim", em dupla com Tuca, uma cantora gorda e alegre, que morreu cedo.
Altemar Dutra, cantor pouco
reconhecido, mas imensamente
popular, que faleceu no auge da
carreira, consagrou dois ranchos
muito cantados na época, provavelmente de autoria da dupla
Evaldo Gouvêa / Jair Amorim,
dois compositores extraordinários, pouco conhecidos das novas
gerações. "Sonhei que eu era um
dia um trovador / daqueles tempos que não voltam mais".
Depois, o ritmo feneceu. A
grande geléia geral da Tropicália, o predomínio dos ritmos do
Nordeste, junto do uso mais
apurado da guitarra e a própria
sofisticação musical dos nossos
maiores, recorrendo a ritmos
mais complexos, contribuíram
para o ocaso da marcha-rancho.
O último clássico tem mais de 25
anos, o "Rancho da Goiabada",
de João Bosco e Aldir Blanc.
Mas o rancho se eternizará,
porque será o ritmo que permitirá, mais de perto, que nossos netos se lembrem de nós, do mesmo
modo que nós nos lembramos
dos velhos.
Internet: www.dinheirovivo.com.br
E-mail - lnassif@uol.com.br
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