São Paulo, domingo, 29 de agosto de 2004

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OPINIÃO ECONÔMICA

Uma falsa alternativa

RUBENS RICUPERO

Pode parecer que só quem não tem o que fazer se preocuparia hoje com a competitividade do Brasil no comércio exterior. Afinal, as exportações vêm crescendo, no ano passado e neste, a taxas superiores a 20%, chegando às vezes a 30%. O saldo comercial voltou aos tempos milagrosos e, até em contas correntes, nosso permanente ponto fraco, temos produzido excedentes que reduzem a necessidade de financiamento externo. Se é assim, onde está o problema?
O maior deles é sugerido pelo desempenho decepcionante das vendas ao mercado norte-americano, no qual quase não conseguimos crescer, conforme mostrei no artigo do domingo passado. Ora, não se trata de um destino qualquer, mas do maior mercado importador do mundo, do mais dinâmico em contribuição ao crescimento da demanda de importações, do que sempre foi historicamente o primeiro mercado individual do país, desde a segunda metade do século 19 e início do 20, quando chegou a absorver 36% das exportações brasileiras, porcentagem agora reduzida a 20%.
Por razões que têm a ver com a cultura e o sistema de distribuição e comercialização, as outras grandes economias desenvolvidas, a União Européia e o Japão, apresentam propensão a importar bem inferior à dos EUA. Isso é particularmente sensível nas manufaturas de alta e média tecnologia, de elevado valor agregado, o filé mignon do comércio. Nessa área, os americanos são, em geral, muito mais abertos e dispostos a importar. É por isso que seu mercado funciona, na prática, como uma espécie de barômetro da competitividade exportadora industrial. Não é preciso encomendar estudos para saber se somos competitivos. Salvo nos casos de produtos protegidos, basta ver se somos capazes de vender no mercado ianque.
Mas que importância tem isso se vendemos aos outros, é verdade que sobretudo produtos agropecuários, nos quais nossa competitividade é indiscutível? Essa mesma objeção foi, no Rio de Janeiro do começo dos anos 1950, dirigida por Jacob Viner contra Raúl Prebisch. Acusado de considerar a agricultura como símbolo de pobreza, o diretor da Cepal defendeu-se com o argumento de que seria absurdo atribuir-lhe idéia tão esdrúxula, pois seu país, a Argentina, havia alcançado, graças à agricultura, renda per capita extremamente elevada no princípio do século 20.
Em lugar de promover a industrialização, dizia Viner, devia-se introduzir o progresso técnico no setor agrícola, a fim de aumentar a produtividade e expandir as exportações. De acordo, respondeu Prebisch, mas o progresso técnico expulsará mão-de-obra do campo e caberá à indústria e a atividades a ela associadas empregar esses trabalhadores com produtividade crescente.
No fundo, o debate é supérfluo e a alternativa é falsa, pois os dois setores são caras inseparáveis da mesma moeda, sendo difícil traçar fronteiras impermeáveis entre agricultura intensiva em tecnologia, agroindústria, indústria alimentar e manufaturas em geral. O que se pode afirmar, no exemplo brasileiro, é que, acima de tudo devido à Embrapa, incorporou-se tecnologia à agropecuária, que conquistou competitividade internacional. Falta agora fazer algo parecido na indústria avançada.
Os sucessos irrecusáveis -a Embraer, a Vale do Rio Doce, não só em minérios mas em ferrovias e portos, a Petrobras, em exploração de águas profundas, a siderurgia, a citada Embrapa- indicam duas coisas.
A primeira é que muitas vezes o Estado teve de dar o empurrão inicial, embora tenha depois correspondido aos empresários assegurar a continuidade em alguns casos.
A segunda é que as políticas industriais chamadas de verticais, isto é, dirigidas a um setor específico, podem ser altamente eficientes se, como nos exemplos da Embraer e da Embrapa, a ênfase de partida e chegada for sempre o conhecimento, a pesquisa voltada ao mercado, o desenvolvimento de recursos humanos. Nesse sentido, tornar operacionais os mais de 20 fundos sobre inovação tecnológica, criados pelo ministro Sardenberg, seria um passo gigantesco para a conquista da competitividade.
Como esforço complementar ao nacional, convém não desperdiçar o potencial exportador das empresas transnacionais, sobretudo das hoje batizadas de "integradoras globais", as que estabelecem cadeias internacionais de produção, dentro das quais cada filial se especializa em alguns produtos, a fim de auferir ganhos de escala. Das 500 empresas gigantes da revista "Fortune", o Brasil tem cerca de 400, mas algumas exportam pouco pois vieram atraídas pelo mercado interno. A prioridade, assim, deveria ser criar condições para estimular a exportar as empresas já instaladas no país.
De todos os países-origem das transnacionais, o único que publica dados sobre quanto exportam as filiais de suas empresas é os EUA. O que eles revelam é que, no Brasil, mesmo com a melhoria das condições de câmbio após 1998, as filiais de empresas americanas só aumentaram marginalmente as exportações, de 14% a 18%.
Mais de 80% de suas vendas se fazem ainda dentro do mercado interno, o que não é de estranhar, dadas a dimensão e a voracidade do nosso. Levando em conta, porém, que, em outros países da América Latina, a propensão para exportar dessas filiais alcança quase os 40%, não seria irrealista obter melhoria significativa da porcentagem atual.
Essa é apenas uma amostra do que a Unctad, com o Pnud, tencionam sugerir ao governo amanhã, numa reunião em Brasília, como conteúdo de uma estratégia sobre investimentos estrangeiros direcionados ao aumento das exportações.
Outra meta, dentro dessa estratégia, seria atrair investimentos estrangeiros para as regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste, que só receberam 15% das inversões de fora. É evidente que os governos não souberam aproveitar as exceções e as vantagens em matéria de subsídios, por exemplo, que as regras da Organização Mundial do Comércio admitem para ajudar o desenvolvimento regional.
Estratégia clara, com agência federal eficiente para pô-la em prática em articulação com agências estaduais, é o meio de diversificar e melhorar a oferta exportadora, superando as falsas alternativas. Nada impede, com efeito, expandir as vendas à Europa e aos EUA, ao mesmo tempo. Como nada impediu que os EUA, a Austrália e o Canadá sejam os primeiros exportadores agrícolas à China, sem afetar sua competitividade em manufaturas, serviços, tecnologia e tudo o mais.


Rubens Ricupero, 67, é secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), mas expressa seus pontos de vista em caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda (governo Itamar Franco).


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