São Paulo, domingo, 29 de agosto de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

O mundo desigual das moedas nacionais

LUIZ GONZAGA BELLUZZO

O jornal "Valor Econômico", na sua edição de sexta-feira, 27 deste mês, retoma o debate sobre o controle de capitais e, portanto, sobre a conversibilidade do real. A última receita aviada nos laboratórios da sabedoria financeira nativa recomenda o avanço e a consolidação da conversibilidade do real mediante explícitas garantias legais. Prescreve Domingo Cavallo com taxa flutuante. Brilhantes em seu "platonismo", meus amigos economistas que advogam tal providência partem de um pressuposto duvidoso: na assembléia das moedas nacionais, todos os gatos são pardos.
A idéia é generosa, mas não leva em conta as "imperfeições" que perturbam o mundo real: 1) o sistema monetário global é constituído por uma hierarquia de moedas, umas mais "líquidas" do que as outras; 2) em todos os sistemas monetários conhecidos, inclusive no padrão-ouro, a moeda que denomina e liquida contratos e transações internacionais é a moeda do país hegemônico; 3) o surgimento de "blocos monetários", como a Europa do euro, deve ser tomado como exemplo de uma decisão política originária capaz de "criar" um novo ambiente para o desenvolvimento dos mercados; 4) a idéia de uma moeda global, emitida por um governo mundial, não parece muito promissora nos dias de hoje.
Deve-se reconhecer, no entanto, um mérito na tese da conversibilidade: a própria formulação da questão exprime as contradições estruturais do sistema monetário internacional vigente. Ancorado na moeda nacional do país hegemônico e combalido por uma babel de regimes cambiais, ele se mostra incapaz de solver os crônicos desequilíbrios do balanço de pagamentos. (Piores que isso, só mesmo as propostas de "ajustamento" elocubradas pelos conservadores, dentro e fora da academia.)
Diante desse quadro, a visão dominante, amparada na teoria das vantagens comparativas de David Ricardo, torce o nariz. No "modelo" ricardiano, as mercadorias são trocadas em proporção às "quantidades" de trabalho incorporado e os países se especializam na venda de produtos de menor custo relativo. A moeda é apenas um meio de facilitar o intercâmbio de mercadorias; não há diferenças de poder financeiro e, portanto, estão ausentes os desequilíbrios do balanço de pagamentos decorrentes das relações de débito e crédito entre os países. Na perspectiva ricardiana, a correção dos desequilíbrios seria automática, respondendo às forças compensatórias da economia competitiva: a estrutura "natural" de preços relativos (só alterável a longo prazo mediante o progresso técnico) e as variações na quantidade de moeda (e nos preços monetários) que resultam das entradas ou saídas de ouro, conforme a posição deficitária ou superavitária do balanço de pagamentos.
As práticas desenvolvimentistas nos países periféricos nasceram da percepção de que as vantagens competitivas no capitalismo são "construídas" pela concorrência, isto é, pelo impulso irrefreável de ganhar a dianteira mediante o avanço tecnológico, a concentração e a centralização de capitais. A construção de vantagens nas economias em desenvolvimento exige políticas de Estado capazes de sustentar taxas elevadas de investimento sobre o PIB e, ao mesmo tempo, contornar as restrições do balanço de pagamentos mediante a expansão acelerada das exportações líquidas.
As experiências mais bem-sucedidas parecem indicar que a defesa da taxa de câmbio real, os superávits em conta corrente e a acumulação de reservas elevadas tornaram-se cruciais num mundo de grande mobilidade de capitais. As reservas elevadas garantem o atendimento da demanda por liquidez em moeda forte e, assim, asseguram a estabilidade da taxa de câmbio, o controle da inflação e a expansão do crédito doméstico.
Essas políticas são chamadas de neomercantilistas e freqüentemente são acusadas de afetar negativamente o comércio internacional, porque bloqueiam os processos de ajustamento entre deficitários e superavitários. Mas num ambiente internacional em que prevalecem a hierarquia de moedas e assimetrias nos mercados financeiros não restam muitas opções aos países periféricos que buscam avançar no processo de desenvolvimento.
Alguns economistas da corrente dominante acabaram de "descobrir" uma triste e elementar verdade: os países mais débeis estão maculados pelo "pecado original", isto é, os mercados financeiros globais não absorvem, em escala relevante, dívida denominada em moeda fraca. Nas economias de moeda sem reputação e "ilíquidas", a conversibilidade em conta de capital tende a produzir ciclos de euforia e depressão. Valorizações indesejadas da moeda nacional são seguidas de desvalorizações abruptas e crises nos mercados financeiros domésticos.
Nos momentos de contração da liquidez internacional, ainda que a adoção de um regime de taxa de câmbio flutuante seja capaz de absorver, em parte, os choques, as autoridades do país de "moeda fraca" -com "ponto de compra" imprevisível- serão obrigadas a usar as reservas ou subir as taxas de juros para impedir uma derrocada do câmbio. Se as reservas são escassas, o preço a pagar é o ajustamento recessivo.


Luiz Gonzaga Belluzzo, 60, é professor titular de Economia da Unicamp (Universidade de Campinas). Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo (governo Quércia).


Texto Anterior: Opinião econômica - Rubens Ricupero: Uma falsa alternativa
Próximo Texto: Panorâmica - Energia: Petrobras formaliza contrato para explorar petróleo na Colômbia
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.