São Paulo, Domingo, 29 de Agosto de 1999
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LUÍS NASSIF
O "gordinho sinistro"

Quando o advogado Saulo Ramos tornou-se consultor-geral da República, o homem que fazia as leis do governo José Sarney, meti-me numa polêmica feroz com ele, um rolo dos diabos.
De minha parte, o episódio era um laboratório para entender como se formava o poder nesse país, assistir -com olhos treinados pelo processo- como se faziam leis, naquele início de redemocratização. Estava nesse tiroteio quando me passaram a dica de procurar um velho personagem político, o Bartolomeu Santos, senhor solteiro, sexagenário, pernambucano, que muito jovem havia sido chefe de gabinete do governador Agamenon Magalhães, mudara-se para o Rio, fizera parte do grupo de Negrão de Lima e atravessara sucessivos governos -inclusive com ligações com a linha-dura de Médici.
Apesar de ser de direita, como se dizia, o velho Bartô encantara os jovens militantes do movimento estudantil dos anos 60 -entre eles Eros Grau, Beluzzo, Serra e outros- trazendo em primeira mão as fofocas do centro do poder. Não daquele poder aparente, de políticos que votam sem saber o quê, e até chegam a cargos importantes sem entender, nem de empresários endinheirados, mas bobinhos, nem aquele deslumbramento que acometia os provisoriamente poderosos -como os que me processavam-, mas o poder de fato da República, aquele que conhece os meandros da decisão, que coloca as pessoas nos lugares-chave e articula as ligações entre interesses empresariais, políticos e a máquina.
Eram aqueles que, governo após governo, controlavam a máquina.
A partir dele penetrei nesse mundo, conheci velhos personagens dos anos 50, já afastados da política, outros ainda atuantes.
Desse conjunto de informações foi possível identificar o pai de todos, o mais influente lobista que o país conheceu, Augusto Frederico Schmidt, poeta e empresário, que tinha por hábito botar apelido em todo mundo, e que foi apelidado por Gondim da Fonseca -brilhante panfletário de esquerda- de "gordinho sinistro".
Era figura complexa, que exercia enorme influência sobre JK -período em que seu poder atingiu o apogeu, quando conseguiu convencer o presidente a comandar uma ofensiva diplomática contra os Estados Unidos, na famosa Operação Panamericana (OPA), sobre a qual falo outro dia.
A influência devia-se a uma imaginação poderosa, temerária até, um texto eficiente, um relacionamento ferozmente ciumento com os amigos e uma linguagem absolutamente desbocada, que fazia as delícias de JK. Schmidt costumava esculhambá-lo em público.
- Você é irresponsável - gritava-lhe. E Sara pior ainda, por causa das futilidades.
JK divertia-se, mas logo depois vingava-se com o mesmo humor:
- Vou te mandar o discurso técnico do Roberto Campos para você fazer umas borboletadas.
E até que Campos já escrevia direitinho naquela época.

Spy e Spy
Schmidt descendia politicamente do pensador católico Jackson de Figueiredo, precocemente falecido. Desiludido com a política, logo após a Revolução de 30 Jackson passou a exercitar seu proselitismo por meio de organizações laicas, como a poderosa Santo Ignácio.
A partir de 1937, quando teve início a implantação efetiva do Estado brasileiro, dos escritórios de dois discípulos de Jackson -Schmidt, mais à direita, San Thiago Dantas, mais à esquerda - saíram muitos jovens promissores, que acabariam estendendo pela máquina pública uma rede extensa de influência. Lá em Poços, e no resto do Brasil, a gente ficava tomando partido de um ou de outro grupo, mas no fundo eram extremamente parecidos.
Só como amostra, integravam o grupo de Schmidt do ex-seminarista Roberto Campos a Eliezer Baptista -a mais poderosa imaginação planejadora do país. E o misterioso Jorge Serpa, que os amigos chamam de Lobisomem, porque nunca mostra a cara, e que virou o último herdeiro da tradição de influência de Schmidt.
O reinado de Schmidt começava de manhã na República do Peru, seu apartamento em Copacabana, onde criava um galo chinês branco, que morava em poleiro e tinha rabo que se arrastava até o chão. Acordava cedo, às 5h, e ficava de robe de chambre até o almoço. Foi Schmidt quem conseguiu a TV de Roberto Marinho, ainda no governo Jango. Aliás, o apelido que deu a Marinho era "Príncipe dos Mares", por sua paixão pela pesca submarina.
Para os ricos, Schmidt se apresentava como um intelectual; para os intelectuais, como rico. Em 1922 já era intelectual atuante, ajudando a carregar nas costas Graça Aranha, após sua participação na Semana Modernista. Depois, criou a Editora Schmidt, que lançou Jorge Amado e Graciliano Ramos, entre outros.
Coube a Schmidt estabelecer as relações entre a nova vanguarda literária e os novos quadros econômicos. Em sua volta começaram a se reunir quadros brilhantes, preocupados com os novos tempos, como Gilberto Amado, Edmundo da Luz Pinto e outros frequentadores habituais das rodadas de biriba na casa de Joaquim Salles -jornalista mineiro radicado no Rio, em cuja casa a República ia jogar biriba.
Com o desenvolvimento da indústria de transformação, o país passou a importar vigorosamente produtos básicos, metalúrgicos, químicos, que exigiam grandes capitais. Quando Aranha foi embaixador nos Estados Unidos, nos anos 40, Schmidt deu os primeiros passos para se transformar em importador, graças à sociedade com Lulu Aranha, irmão de Oswaldo, e às relações com Coriolano de Góes, o todo-poderoso burocrata que controlava o Cexim. Ganharam muito dinheiro facilitando importações. E investiram parte grande no Botafogo de Futebol e Regatas.
Sua história vale muitas colunas. Outro dia eu conto mais. E quem souber que conte outra.



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