São Paulo, Domingo, 29 de Agosto de 1999
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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
A transição democrática 20 anos depois

MARIA DA CONCEIÇÃO
TAVARES

Faz 20 anos, com a anistia dos exilados da ditadura, iniciou-se uma transição democrática que culminou com a Constituição de 1988. Assim, a década de 80, apesar da crise econômica, não foi politicamente perdida. Nela tiveram lugar o avanço dos movimentos sociais, a organização da Contag e da CUT, a fundação do PT e as lutas pelas Diretas e pela Constituinte. O Brasil estava reinventando a luta social e política num novo patamar depois de 21 anos de ditadura.
O MDB, a grande frente democrática da resistência e da luta pela abertura da década de 70, acabou se convertendo num grande partido "ônibus" de elites regionais e intelectuais, de classes médias, em busca de equilibrar-se no poder a partir de 1985. Apesar do passado de lutas das suas principais lideranças, não conseguiu, porém, aguentar o tranco da transição democrática pela via do "pacto de compromisso" tecido para obter a vitória no Colégio Eleitoral. No final de 1988, depois de proclamada a Constituição Cidadã, a política econômica e social do governo Sarney já tinha desandado de vez e a aliança PMDB/ PFL tinha conduzido o país a um impasse. Começou então a destruição da centro-esquerda brasileira que tinha liderado intelectualmente o pensamento das classes médias ilustradas. Os tucanos paulistas saíram do PMDB, mas foram derrotados na eleição de 1989, dividindo-se no apoio à candidatura Lula no segundo turno.
O então senador FHC começou aí sua marcha sinuosa para a construção de uma nova direita, aproximando-se do governo Collor a pretexto da "modernidade liberal". O "impeachment" catapultou-o finalmente para o comando do governo, como chanceler e ministro da Fazenda. Para tornar-se candidato "viável" em 1994, refez a aliança com o PFL (aquela que condenara em 1989 e pela qual fundara o PSDB), tendo ACM como principal garantidor do pacto político mais amplamente conservador de que o Brasil tem notícia na sua história republicana. A restauração conservadora da "sagrada aliança" deu base de sustentação para a execução de uma política econômica que entregou o país à sanha dos especuladores, desbaratou o patrimônio público e aumentou ao paroxismo o endividamento interno e externo.
O governo FHC não foi apenas responsável pelo agravamento da crise econômica e social iniciada na década de 80, mas contribui decisivamente para o desmantelamento do Estado Nacional, em todos os planos. O Brasil foi um dos últimos países a entrar no jogo neoliberal, e o recém-eleito presidente conhecia o preço a pagar. Por meio da submissão de nossas políticas, econômica, social, diplomática e de segurança, aos desígnios metropolitanos de uma potência imperial, a sociedade brasileira está sofrendo um grau de desestruturação e de desnacionalização sem precedentes que põe em risco a própria existência das liberdades públicas.
A "transição democrática" está sendo ameaçada, mas não pela oposição que tem o direito e o dever de exprimir o protesto dos cidadãos oprimidos e escorchados deste país e tentar frear o desgoverno que vem promovendo a destruição acelerada dos avanços políticos e sociais conquistados nas lutas das décadas de 70 e 80. Qualquer que seja o resultado imediato da marcha das oposições, o seu maior sucesso reside no cumprimento do dever de servir de canal de expressão democrática à ira e ao desânimo que estão varrendo a opinião pública.
O atual ministro da Justiça, num esforço de racionalização que não honra o seu passado, demonstra falsa consciência da realidade em seu artigo (nesta Folha, 27/08/99) sobre a "A Marcha e a Democracia". Afirma que "a harmonia jurídica vem sendo restabelecida entre os brasileiros", quando a maioria dos direitos assegurados pela Constituição foi desmontada e o modo cesarista de governar com renovação contínua de centenas de medidas provisórias lançou as relações jurídicas, os contratos e os direitos adquiridos no mais completo tumulto. Tampouco poderia afirmar com um mínimo de boa-fé que "o exercício da força está sendo submetido aos civilizados valores da cidadania", uma semana depois do inacreditável julgamento do massacre de Carajás.
O presidente da República, depois das chantagens e "transações" a que deixou submeter o seu governo para obter a reeleição, terminou burlando a sociedade civil que o apoiou confiando na "estabilidade". Chegou-se assim a uma situação de desprestígio pessoal e de desgoverno que tem como contrapartida a arrogância de seu grupo palaciano. A insegurança do tucanato é manifesta, mas o extremismo reacionário das elites palacianas autotransformadas em guarda pretoriana tem raízes psicológicas no desespero e na raiva de quem abandonou os ideais de sua juventude, em troca dos benefícios ou até de meros símbolos do poder ao qual se agarram como ostras. Alguns deles não têm mais destino como cidadãos brasileiros, a não ser o de vender-se ostensivamente ao "mercado", enquanto as negociatas das telecomunicações e do Banco Central, denunciadas por setores do Congresso e da mídia, continuam sem qualquer esclarecimento ou punição.
A irritação do grupo palaciano cúmplice do "amigo" no poder tinha de voltar-se finalmente contra os oprimidos, os "sem terra", "sem teto", "sem trabalho" e naturalmente contra a esquerda, acusando-a de "sem rumo" e finalmente de golpista. Só a raiva dos renegados explica o destempero das intervenções dos "paladinos" mais iracundos do tucanato. Só a má consciência permite entender as declarações intempestivas do, até há pouco, discreto e supostamente poderoso ministro da Fazenda. A acusação de tentativa de golpe foi tão desvairada que, ultrapassando os limites do senso comum, teve de ser contida pela experiência política da razão conservadora. Nada mais, nada menos que o chefe do atual SNI e o próprio ACM chamaram às falas os despropósitos dos "novatos da corte".
Infelizmente não posso prever um alinhamento das forças políticas conservadoras internas capaz de produzir uma melhoria na crise econômica e social do nosso país. Desse modo não me parece possível evitar enfrentamentos crescentes de todos os setores da sociedade com as sobras do poder de um chefe de governo que se deslegitima a olhos vistos. Hoje, mais do que nunca o governo FHC só tem como "fiador em última instância" o poder do dinheiro e do "Império". Até para enfrentar uma conjuntura de embate democrático, o palácio ficou sem iniciativa, a não ser a ameaça e a manipulação. As forças populares, essas sim não totalitárias, demonstraram em Brasília pelas vozes múltiplas das oposições que acabarão por construir um projeto democrático para o país.


Maria da Conceição Tavares, 69, economista, é professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professora associada da Universidade de Campinas (Unicamp) e ex-deputada federal (PT-RJ).
www.abordo.com.br/mctavares
e-mail: mctavares@cdsid.com.br







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