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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
A transição democrática 20 anos depois
MARIA DA CONCEIÇÃO
TAVARES
Faz 20 anos, com a anistia dos
exilados da ditadura, iniciou-se
uma transição democrática que
culminou com a Constituição de
1988. Assim, a década de 80, apesar
da crise econômica, não foi politicamente perdida. Nela tiveram lugar
o avanço dos movimentos sociais, a
organização da Contag e da CUT, a
fundação do PT e as lutas pelas Diretas e pela Constituinte. O Brasil
estava reinventando a luta social e
política num novo patamar depois
de 21 anos de ditadura.
O MDB, a grande frente democrática da resistência e da luta pela
abertura da década de 70, acabou
se convertendo num grande partido
"ônibus" de elites regionais e intelectuais, de classes médias, em busca de equilibrar-se no poder a partir
de 1985. Apesar do passado de lutas
das suas principais lideranças, não
conseguiu, porém, aguentar o tranco da transição democrática pela
via do "pacto de compromisso" tecido para obter a vitória no Colégio
Eleitoral. No final de 1988, depois de
proclamada a Constituição Cidadã, a política econômica e social do
governo Sarney já tinha desandado
de vez e a aliança PMDB/ PFL tinha conduzido o país a um impasse. Começou então a destruição da
centro-esquerda brasileira que tinha liderado intelectualmente o
pensamento das classes médias
ilustradas. Os tucanos paulistas saíram do PMDB, mas foram derrotados na eleição de 1989, dividindo-se
no apoio à candidatura Lula no segundo turno.
O então senador FHC começou aí
sua marcha sinuosa para a construção de uma nova direita, aproximando-se do governo Collor a pretexto da "modernidade liberal". O
"impeachment" catapultou-o finalmente para o comando do governo,
como chanceler e ministro da Fazenda. Para tornar-se candidato
"viável" em 1994, refez a aliança
com o PFL (aquela que condenara
em 1989 e pela qual fundara o
PSDB), tendo ACM como principal
garantidor do pacto político mais
amplamente conservador de que o
Brasil tem notícia na sua história
republicana. A restauração conservadora da "sagrada aliança" deu
base de sustentação para a execução de uma política econômica que
entregou o país à sanha dos especuladores, desbaratou o patrimônio
público e aumentou ao paroxismo
o endividamento interno e externo.
O governo FHC não foi apenas
responsável pelo agravamento da
crise econômica e social iniciada na
década de 80, mas contribui decisivamente para o desmantelamento
do Estado Nacional, em todos os
planos. O Brasil foi um dos últimos
países a entrar no jogo neoliberal, e
o recém-eleito presidente conhecia
o preço a pagar. Por meio da submissão de nossas políticas, econômica, social, diplomática e de segurança, aos desígnios metropolitanos
de uma potência imperial, a sociedade brasileira está sofrendo um
grau de desestruturação e de desnacionalização sem precedentes que
põe em risco a própria existência
das liberdades públicas.
A "transição democrática" está
sendo ameaçada, mas não pela
oposição que tem o direito e o dever
de exprimir o protesto dos cidadãos
oprimidos e escorchados deste país
e tentar frear o desgoverno que vem
promovendo a destruição acelerada dos avanços políticos e sociais
conquistados nas lutas das décadas
de 70 e 80. Qualquer que seja o resultado imediato da marcha das
oposições, o seu maior sucesso reside no cumprimento do dever de servir de canal de expressão democrática à ira e ao desânimo que estão
varrendo a opinião pública.
O atual ministro da Justiça, num
esforço de racionalização que não
honra o seu passado, demonstra
falsa consciência da realidade em
seu artigo (nesta Folha, 27/08/99)
sobre a "A Marcha e a Democracia". Afirma que "a harmonia jurídica vem sendo restabelecida
entre os brasileiros", quando a
maioria dos direitos assegurados
pela Constituição foi desmontada
e o modo cesarista de governar
com renovação contínua de centenas de medidas provisórias lançou as relações jurídicas, os contratos e os direitos adquiridos no
mais completo tumulto. Tampouco poderia afirmar com um mínimo de boa-fé que "o exercício da
força está sendo submetido aos civilizados valores da cidadania",
uma semana depois do inacreditável julgamento do massacre de
Carajás.
O presidente da República, depois das chantagens e "transações" a que deixou submeter o seu
governo para obter a reeleição,
terminou burlando a sociedade
civil que o apoiou confiando na
"estabilidade". Chegou-se assim a
uma situação de desprestígio pessoal e de desgoverno que tem como contrapartida a arrogância
de seu grupo palaciano. A insegurança do tucanato é manifesta,
mas o extremismo reacionário
das elites palacianas autotransformadas em guarda pretoriana
tem raízes psicológicas no desespero e na raiva de quem abandonou os ideais de sua juventude,
em troca dos benefícios ou até de
meros símbolos do poder ao qual
se agarram como ostras. Alguns
deles não têm mais destino como
cidadãos brasileiros, a não ser o
de vender-se ostensivamente ao
"mercado", enquanto as negociatas das telecomunicações e do
Banco Central, denunciadas por
setores do Congresso e da mídia,
continuam sem qualquer esclarecimento ou punição.
A irritação do grupo palaciano
cúmplice do "amigo" no poder tinha de voltar-se finalmente contra os oprimidos, os "sem terra",
"sem teto", "sem trabalho" e naturalmente contra a esquerda,
acusando-a de "sem rumo" e finalmente de golpista. Só a raiva
dos renegados explica o destempero das intervenções dos "paladinos" mais iracundos do tucanato. Só a má consciência permite
entender as declarações intempestivas do, até há pouco, discreto
e supostamente poderoso ministro da Fazenda. A acusação de
tentativa de golpe foi tão desvairada que, ultrapassando os limites do senso comum, teve de ser
contida pela experiência política
da razão conservadora. Nada
mais, nada menos que o chefe do
atual SNI e o próprio ACM chamaram às falas os despropósitos
dos "novatos da corte".
Infelizmente não posso prever
um alinhamento das forças políticas conservadoras internas capaz de produzir uma melhoria na
crise econômica e social do nosso
país. Desse modo não me parece
possível evitar enfrentamentos
crescentes de todos os setores da
sociedade com as sobras do poder
de um chefe de governo que se
deslegitima a olhos vistos. Hoje,
mais do que nunca o governo
FHC só tem como "fiador em última instância" o poder do dinheiro e do "Império". Até para enfrentar uma conjuntura de embate democrático, o palácio ficou
sem iniciativa, a não ser a ameaça e a manipulação. As forças populares, essas sim não totalitárias, demonstraram em Brasília
pelas vozes múltiplas das oposições que acabarão por construir
um projeto democrático para o
país.
Maria da Conceição Tavares, 69, economista, é professora emérita da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professora
associada da Universidade de Campinas
(Unicamp) e ex-deputada federal (PT-RJ).
www.abordo.com.br/mctavares
e-mail: mctavares@cdsid.com.br
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