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VISÃO DE FORA
Produção, comércio e crise do capitalismo russo
MICHAEL PIORE
A crise econômica na Rússia é
espantosa por uma longa série de
razões, mas entre as principais
deve estar a maneira pela qual o
sistema produtivo continuou
funcionando, por meio de um
complexo sistema de escambo,
mesmo quando do colapso completo do sistema financeiro. Isso
salvou a economia russa da paralisação completa devido à crise, mas é também indicativo dos
limites das transformações econômicas conquistadas nos últimos oito anos.
Isso nos faz pensar se, mesmo
que o sistema financeiro tivesse
conseguido sobreviver e prosperar, as reformas tão alardeadas
no Ocidente poderiam ser vistas
como um sucesso. Com certeza,
esse dado põe em destaque os limites da infra-estrutura teórica
nos termos da qual as reformas
foram concebidas. Por extensão,
coloca-se em questão o direcionamento da política econômica
recente não só no antigo império
soviético, mas também na América Latina: a política da região é
concebida com base na mesma
estrutura.
O cerne do problema é que um
sistema econômico tenha sido
construído em torno de dois processos distintos e muitas vezes
contraditórios: o comércio e a
produção. O poder das economias industriais modernas que
chamamos capitalistas provém
de sua capacidade de ligar esses
dois processos dentro de um mesmo sistema. Mas a forma exata
pela qual isso é feito continua a
ser um certo mistério para a
ciência econômica contemporânea.
Em termos de seu "corpus" de
teoria coerente, a teoria econômica, basicamente, trata do comércio. Nossa compreensão da
produção é, na melhor das hipóteses, fragmentária; nossa capacidade de explicar como produção e comércio se combinam é
ainda mais frágil. Essas questões
têm ocupado a atenção dos pesquisadores nesse campo, mas os
resultados são fragmentários, e
as implicações em termos políticos, inconclusivas.
Na medida em que a teoria
econômica vem dominando a
política econômica nas últimas
duas décadas (e a influência da
teoria econômica abstrata foi
considerável), as políticas foram
derivadas de teorias do comércio
e podem bem ter perturbado seriamente a evolução das economias que guiaram. Isso se aplica
em especial à Rússia.
A diferença crucial entre o comércio e a produção é que o primeiro tira vantagem das diferenças entre necessidades e/ou recursos disponíveis em diferentes
lugares. É uma forma de arbitragem. Em uma economia competitiva, essas diferenças são sinalizadas por diferenciais de preço.
O negociante responde a essas
diferenças de preço movendo
mercadorias de áreas de baixo
preço para áreas de alto preço.
Ele lucra ao fazê-lo, mas ao mesmo tempo amplia o bem- estar de
sua sociedade.
Para fazer com que um sistema
comercial como esse seja eficiente, é necessária uma economia
competitiva, na qual os preços
possam reagir livremente à oferta e à procura (o que permite
construir sinais claros da escassez relativa), e um grupo de pessoas que aja rapidamente em
resposta a esses sinais, sem se
deixar distrair por outras considerações.
O exemplo clássico de como um
sistema comercial contribui para
o bem-estar social envolve um
conjunto de ilhas isoladas, cada
uma delas vivendo do que quer
que a natureza lhes tenha fornecido, que subitamente entram
em contato umas com as outras
de uma maneira que possibilita
o comércio. Se as pessoas de cada
uma dessas ilhas têm seu conjunto peculiar de gostos e desejos
(sua cultura, pode-se dizer), elas
ficariam mais satisfeitas após o
comércio, mesmo que os dotes
naturais de cada ilha fossem os
mesmos. É claro que, se os dotes
naturais fossem diferentes, os ganhos auferidos pelo comércio seriam ainda maiores.
Um sistema de produção é diferente. Contribui para o bem- estar social porque, por seu intermédio, as pessoas se especializam em atividades diferentes. A
especialização permite que descubram e empreguem novas tecnologias, que progressivamente
ampliam a quantidade de bens e
serviços que podem ser produzidos, dada uma base de recursos
determinada.
Mas, ao se especializarem dessa maneira, as pessoas perdem a
capacidade de operar por conta
própria. Assim, tornam-se cada
vez mais dependentes umas das
outras. Em um sistema comercial envolvendo ilhas previamente isoladas, o pior que pode
acontecer quando há um rompimento dos laços comerciais é que
as pessoas voltem ao ponto em
que estavam antes. Mas, quando
um sistema de produção se rompe, as pessoas ficam piores do
que estavam no passado: ao se
especializarem, perderam a capacidade de produzir por conta
própria. As pessoas não podem
abandonar umas às outras para
obter ganhos momentâneos, como um sistema comercial eficiente requer que façam.
A produção tem outras qualidades que a distinguem do comércio: é indireta e acontece ao
longo do tempo. Por isso, as pessoas precisam assumir compromissos de longo prazo. Não podem responder a todo diferencial
de preços. Se o fizessem, o sistema de produção se romperia.
Um sistema de produção requer
também um tipo de conhecimento e informação muito mais complexo do que um sistema comercial necessita. Idealmente, os
protagonistas em um sistema de
produção gostariam de ter a informação sobre escassez relativa
que os preços gerados pelo comércio fornecem. Precisam saber
quais recursos são abundantes e
quais são escassos.
Mas essa espécie de conhecimento não basta. Também precisam saber como produzir; ter conhecimento sobre a tecnologia e
sobre os parceiros com os quais
necessitam cooperar. Por todas
essas razões, um sistema de produção depende de confiança, de
relações íntimas e de longo prazo.
A distinção entre produção e
comércio tornou-se clara para
mim em minha primeira viagem
ao que hoje é a Rússia, no verão
de 1991, pouco antes do colapso
da URSS. Eu estava participando
de uma conferência sobre a transição para o capitalismo. Cinco
pessoas do meu grupo (eu entre
elas) decidiram, de improviso,
visitar a cidade que então ainda
se chamava Leningrado. Um dos
acadêmicos russos na conferência, um "capitalista nascente",
como ele mesmo definiu, concordou em ir conosco como guia e
intérprete.
Como não tínhamos obtido
vistos com antecedência, o plano
era apanhar o trem noturno de
Moscou, passar o dia em Leningrado e voltar no mesmo trem na
noite seguinte. Quando chegamos a Leningrado, de manhã cedinho, chovia forte. Nosso guia
nos deixou na estação e saiu à
procura de transporte. Voltou
uma hora depois e disse ter encontrado um ônibus, mas que
nos custaria US$ 100, muito dinheiro em Leningrado, mas barato para nós, norte-americanos,
especialmente se dividido entre
cinco pessoas.
Leningrado era o destino de
muitas excursões de colégios de
toda a URSS, e do lado de fora da
estação havia literalmente centenas de ônibus esperando que
seus grupos chegassem. Nosso
professor-guia foi de um ônibus
para outro até que encontrou um
motorista disposto a telefonar,
comunicar que seu ônibus estava
quebrado e nos levar. "O capitalismo não é maravilhoso?", explicou o guia, enquanto nós seis
embarcávamos no ônibus reservado a 60 estudantes e partíamos
para a cidade.
Mas o capitalismo não poderia
funcionar se todos estivessem
prontos a se vender, na última
hora, a quem pagasse mais alto.
O espírito capitalista que deixou
uma excursão de crianças a pé
na cidade, naquele dia chuvoso,
deixaria as fábricas sem suprimentos críticos e paralisaria a
cadeia de produção numa economia moderna.
Tradução de
Paulo Migliacci
Quem é MICHAEL PIORE
norte-americano, 57 anos, doutor em economia do trabalho pela Universidade Harvard (EUA), é professor de economia política no MIT (Massachusetts Institute of Technology). É autor de "Beyond Individualism"
(Harvard University Press, 1995), entre outras obras.
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