São Paulo, domingo, 29 de novembro de 1998

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VISÃO DE FORA
Produção, comércio e crise do capitalismo russo

MICHAEL PIORE
A crise econômica na Rússia é espantosa por uma longa série de razões, mas entre as principais deve estar a maneira pela qual o sistema produtivo continuou funcionando, por meio de um complexo sistema de escambo, mesmo quando do colapso completo do sistema financeiro. Isso salvou a economia russa da paralisação completa devido à crise, mas é também indicativo dos limites das transformações econômicas conquistadas nos últimos oito anos.
Isso nos faz pensar se, mesmo que o sistema financeiro tivesse conseguido sobreviver e prosperar, as reformas tão alardeadas no Ocidente poderiam ser vistas como um sucesso. Com certeza, esse dado põe em destaque os limites da infra-estrutura teórica nos termos da qual as reformas foram concebidas. Por extensão, coloca-se em questão o direcionamento da política econômica recente não só no antigo império soviético, mas também na América Latina: a política da região é concebida com base na mesma estrutura.
O cerne do problema é que um sistema econômico tenha sido construído em torno de dois processos distintos e muitas vezes contraditórios: o comércio e a produção. O poder das economias industriais modernas que chamamos capitalistas provém de sua capacidade de ligar esses dois processos dentro de um mesmo sistema. Mas a forma exata pela qual isso é feito continua a ser um certo mistério para a ciência econômica contemporânea.
Em termos de seu "corpus" de teoria coerente, a teoria econômica, basicamente, trata do comércio. Nossa compreensão da produção é, na melhor das hipóteses, fragmentária; nossa capacidade de explicar como produção e comércio se combinam é ainda mais frágil. Essas questões têm ocupado a atenção dos pesquisadores nesse campo, mas os resultados são fragmentários, e as implicações em termos políticos, inconclusivas.
Na medida em que a teoria econômica vem dominando a política econômica nas últimas duas décadas (e a influência da teoria econômica abstrata foi considerável), as políticas foram derivadas de teorias do comércio e podem bem ter perturbado seriamente a evolução das economias que guiaram. Isso se aplica em especial à Rússia.
A diferença crucial entre o comércio e a produção é que o primeiro tira vantagem das diferenças entre necessidades e/ou recursos disponíveis em diferentes lugares. É uma forma de arbitragem. Em uma economia competitiva, essas diferenças são sinalizadas por diferenciais de preço. O negociante responde a essas diferenças de preço movendo mercadorias de áreas de baixo preço para áreas de alto preço. Ele lucra ao fazê-lo, mas ao mesmo tempo amplia o bem- estar de sua sociedade.
Para fazer com que um sistema comercial como esse seja eficiente, é necessária uma economia competitiva, na qual os preços possam reagir livremente à oferta e à procura (o que permite construir sinais claros da escassez relativa), e um grupo de pessoas que aja rapidamente em resposta a esses sinais, sem se deixar distrair por outras considerações.
O exemplo clássico de como um sistema comercial contribui para o bem-estar social envolve um conjunto de ilhas isoladas, cada uma delas vivendo do que quer que a natureza lhes tenha fornecido, que subitamente entram em contato umas com as outras de uma maneira que possibilita o comércio. Se as pessoas de cada uma dessas ilhas têm seu conjunto peculiar de gostos e desejos (sua cultura, pode-se dizer), elas ficariam mais satisfeitas após o comércio, mesmo que os dotes naturais de cada ilha fossem os mesmos. É claro que, se os dotes naturais fossem diferentes, os ganhos auferidos pelo comércio seriam ainda maiores.
Um sistema de produção é diferente. Contribui para o bem- estar social porque, por seu intermédio, as pessoas se especializam em atividades diferentes. A especialização permite que descubram e empreguem novas tecnologias, que progressivamente ampliam a quantidade de bens e serviços que podem ser produzidos, dada uma base de recursos determinada.
Mas, ao se especializarem dessa maneira, as pessoas perdem a capacidade de operar por conta própria. Assim, tornam-se cada vez mais dependentes umas das outras. Em um sistema comercial envolvendo ilhas previamente isoladas, o pior que pode acontecer quando há um rompimento dos laços comerciais é que as pessoas voltem ao ponto em que estavam antes. Mas, quando um sistema de produção se rompe, as pessoas ficam piores do que estavam no passado: ao se especializarem, perderam a capacidade de produzir por conta própria. As pessoas não podem abandonar umas às outras para obter ganhos momentâneos, como um sistema comercial eficiente requer que façam.
A produção tem outras qualidades que a distinguem do comércio: é indireta e acontece ao longo do tempo. Por isso, as pessoas precisam assumir compromissos de longo prazo. Não podem responder a todo diferencial de preços. Se o fizessem, o sistema de produção se romperia. Um sistema de produção requer também um tipo de conhecimento e informação muito mais complexo do que um sistema comercial necessita. Idealmente, os protagonistas em um sistema de produção gostariam de ter a informação sobre escassez relativa que os preços gerados pelo comércio fornecem. Precisam saber quais recursos são abundantes e quais são escassos.
Mas essa espécie de conhecimento não basta. Também precisam saber como produzir; ter conhecimento sobre a tecnologia e sobre os parceiros com os quais necessitam cooperar. Por todas essas razões, um sistema de produção depende de confiança, de relações íntimas e de longo prazo.
A distinção entre produção e comércio tornou-se clara para mim em minha primeira viagem ao que hoje é a Rússia, no verão de 1991, pouco antes do colapso da URSS. Eu estava participando de uma conferência sobre a transição para o capitalismo. Cinco pessoas do meu grupo (eu entre elas) decidiram, de improviso, visitar a cidade que então ainda se chamava Leningrado. Um dos acadêmicos russos na conferência, um "capitalista nascente", como ele mesmo definiu, concordou em ir conosco como guia e intérprete.
Como não tínhamos obtido vistos com antecedência, o plano era apanhar o trem noturno de Moscou, passar o dia em Leningrado e voltar no mesmo trem na noite seguinte. Quando chegamos a Leningrado, de manhã cedinho, chovia forte. Nosso guia nos deixou na estação e saiu à procura de transporte. Voltou uma hora depois e disse ter encontrado um ônibus, mas que nos custaria US$ 100, muito dinheiro em Leningrado, mas barato para nós, norte-americanos, especialmente se dividido entre cinco pessoas.
Leningrado era o destino de muitas excursões de colégios de toda a URSS, e do lado de fora da estação havia literalmente centenas de ônibus esperando que seus grupos chegassem. Nosso professor-guia foi de um ônibus para outro até que encontrou um motorista disposto a telefonar, comunicar que seu ônibus estava quebrado e nos levar. "O capitalismo não é maravilhoso?", explicou o guia, enquanto nós seis embarcávamos no ônibus reservado a 60 estudantes e partíamos para a cidade.
Mas o capitalismo não poderia funcionar se todos estivessem prontos a se vender, na última hora, a quem pagasse mais alto. O espírito capitalista que deixou uma excursão de crianças a pé na cidade, naquele dia chuvoso, deixaria as fábricas sem suprimentos críticos e paralisaria a cadeia de produção numa economia moderna.


Tradução de Paulo Migliacci
Quem é MICHAEL PIORE
norte-americano, 57 anos, doutor em economia do trabalho pela Universidade Harvard (EUA), é professor de economia política no MIT (Massachusetts Institute of Technology). É autor de "Beyond Individualism" (Harvard University Press, 1995), entre outras obras.



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