São Paulo, domingo, 29 de novembro de 1998

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Lições Contemporâneas
O leilão dos perdedores

O governo brasileiro adotou um modelo de privatização extremamente original em matéria de engenharia político-econômica destruidora. Aparentemente conciliava a fome dos devoradores de Estatais (na feliz expressão da Carta Capital) com a escolha dos "vencedores", na versão cabocla da montagem dos conglomerados coreanos da década de 50. Tudo temperado com o blá-blá-blá da "concorrência", para júbilo dos ideólogos neoliberais de plantão e amplamente difundido pela imprensa, com o patrocínio financeiro de algumas "ONGs" inéditas e de suculentas verbas públicas de propaganda.
Supostamente o dinheiro das privatizações seria levantado no mercado internacional cumprindo um duplo papel: captar recursos externos necessários ao equilíbrio do balanço de pagamentos e equilibrar as contas fiscais. Naturalmente tudo para evitar os "déficits gêmeos" tão propagados pela ignorância ou desfaçatez dos economistas assessores de bancos, grandes empresas e tutti quanti.
A verdadeira natureza do "embrulho" mal começou a vir a público com o "escândalo dos grampos", ao qual a mídia não pode escapar, tantas foram as múltiplas manipulações dos arrogantes irresponsáveis e incompetentes protagonistas do grande jogo do fim do século. Os resultados concretos são patéticos e demonstram para a sociedade que o liberalismo do governo era de fachada e a preocupação da oposição era correta, no que tange à promiscuidade reinante entre negócios públicos e privados.
A maioria das críticas têm se concentrado, porém, em objeções morais ou de ética pública, quase todas corretas e irrespondíveis, mas tem deixado de lado aspectos fundamentais de uma análise mais profunda. A primeira seria de que o governo não escolheu os "ganhadores", no sentido prático da experiência coreana, mas sim "os perdedores". Tanto na experiência de privatização da Vale do Rio Doce como na das Telecomunicações o governo acabou entregando as maiores empresas estatais brasileiras à "rataiada" do mercado nacional e internacional. Desmontou os sistemas integrados com possibilidade de sinergia - nos campos tecnológicos e de expansão da produção e do mercado - e não logrou parcerias sérias com as empresas nacionais e internacionais relevantes, tanto do ponto de vista técnico como da sustentabilidade financeira.
No âmbito internacional escolheu alguns "testas-de-ferro" europeus, apoiados em "empréstimos-ponte" de bancos e grupos financeiros em situação precária nos seus próprios países, com o que não resolveu o problema presente, e muito menos futuro, de necessidades de financiamento externo. Muito ao contrário, o atual modelo de política econômica, supõe a liberalização e a absorção externas de forma permanente.
No plano interno, montou consórcios fajutos de aventureiros locais sem capacidade técnica e financeira própria, alavancando os leilões de privatização, através da manipulação do patrimônio dos fundos de pensão das estatais e do comprometimento dos recursos dos trabalhadores, entregues à guarda do BNDES. Em alguns poucos casos patrocinou a fusão de interesses de grupos com atividades econômica díspares, que em nenhum sentido representam os exemplos internacionais de conglomerados modernos e competitivos.
Estas "brilhantes engenharias financeiras" deram prejuízos consideráveis aos trabalhadores e contribuíram para um maior desequilíbrio patrimonial líquido das instituições públicas de crédito e da própria União, que são os grandes perdedores deste jogo vergonhoso. Não fosse o escândalo dos grampos, as operações de privatização seriam consideradas pela opinião pública desinformada, e mesmo pelos pseudo-técnicos "deformados" deste país como operações vitoriosas. Aliás é patética a tentativa de demonstrar que só a última "telegangue" deu errado.
O segundo ponto a se levar em conta é que o jogo político e financeiro se tornou muito mais complexo e perigoso ao entrar no segundo round, que não por acaso coincide com o segundo mandato do Presidente da República. A administração tucana, tanto no BNDES como no Ministério de Comunicações, já mostrou a que veio e o tucanato já obteve a sua parte de leão no jogo. Agora é a vez dos aliados. Até aqui o Ministério das Minas e Energia, entregue ao PFL, só afetou marginalmente as decisões estratégicas na entrega e no esquartejamento das empresas estatais dos dois setores que supostamente "administra" ou supervisiona.
Na privatização do que resta do filé minhon do sistema energético, nele incluído as grandes redes de distribuição do centro-sul e a Petrobrás, o BNDES e os fundos de pensão continuam sendo peças decisivas do jogo. Os principais parceiros políticos do governo não parecem, portanto, dispostos a entregar ao tucanato um "ministério da produção" que, apesar de tentar iludir a opinião pública com pretensões desenvolvimentistas, na verdade destina-se a outros fins: a oferecer aos empresários, um balcão de liquidação de passivos e, a dar base de sustentação econômica e financeira ao famoso projeto do tucanato de permanecer no poder por 20 anos.
Tudo isto é executado naturalmente com a melhor e mais patriótica das intenções. Como nem a economia política, nem a política econômica se fazem de boas intenções, mas de ações concretas que envolvem interesses - basicamente dinheiro e poder, para as classes dominantes, e trabalho e renda para as classes subalternas - é evidente que o segundo reinado do tucanato começa mal, de todos os pontos de vista.
Do ponto de vista dos grupos dominantes quais são as garantias que o governo pode oferecer aos credores externos? Os "recebíveis" da receita energética (incluíndo petróleo) serão suficientes ou é fundamental distribuir "adequadamente" o patrimônio? É suficiente manter as taxas de juros nas alturas para acomodar as altas taxas de arbitragem dos banqueiros nacionais e internacionais ou é preciso entregar todos os bancos ao capital estrangeiro e caminhar para um "currency board" do tipo argentino?
A partir de julho de 1999 - quando as telecomunicações puderem legalmente ser 100% de propriedade estrangeira - quem vai aparecer por trás dos "testas-de-ferro" para recentralizar o capital e o controle do sistema? E no que se refere ao Petróleo quem serão os ganhadores? Trata-se de um jogo muito pesado em que a esperteza dos nossos "gênios" locais da engenharia financeira não é suficiente para bancar o jogo nem determinar os ganhadores e muito menos o destino de sistemas complexos entregues a essa combinação perversa de capital "piranha" nacional e internacional.
Talvez os leitores não saibam, mas as chamadas "guerras das telecomunicações" no Japão estiveram na raiz da destruição dos grupos político-burocráticos que davam sustentação ao partido conservador no poder desde o após-guerra. A falta de coordenação política interna daí resultante minou a capacidade estratégica de decisão da segunda grande potência mundial para enfrentar o processo de liberalização e globalização da década de 80. A partir dos anos noventa o Japão entrou em crise da qual a saída ainda não esta à vista.
Os resultados destrutivos, para a economia e a sociedade brasileira da perda de rumo das classes dominantes desde a década passada, ainda não estão completamente evidentes. Na verdade estamos assistindo a várias operações simultâneas de desmonte do estado, da economia e da sociedade, realizadas no mais breve período de tempo de que se tem notícia, com exceção do recente desmantelamento do império russo. Lá como cá não parece muito eficaz recorrer ao veredicto final da bomba atômica, quer se trate da verdadeira no caso russo, ou da simbólica no caso dos plutocratas brasileiros. O jogo que interessa restaurar é o do fortalecimento das instituições democráticas, a começar pela restauração da independência dos poderes do Estado, da Federação e dos direitos da cidadania. Só isso poderá lançar as bases de uma nova aliança política capaz de nos salvar do naufrágio da aliança conservadora que domina a cena político-econômica brasileira.
Maria da Conceição Tavares


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