São Paulo, domingo, 30 de junho de 2002

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Os profetas do caos

ALOIZIO MERCADANTE

A crise que o país vive neste momento -a quinta em oito anos de vigência da atual política econômica- é extremamente complexa e grave, não obstante o governo e os especuladores tentarem, simplória ou intencionalmente, atribuí-la ao quadro eleitoral. Este, obviamente, influi na formação de expectativas, mas está muito longe de ser determinante da dinâmica dos mercados financeiros. Particularmente se, como no caso brasileiro, as forças majoritárias de oposição e seu candidato têm uma atitude clara, consequente e responsável em relação à forma de implementar as mudanças propostas -veja-se, por exemplo, a "Carta ao Povo Brasileiro", recentemente apresentada por Lula.
A gravidade da crise decorre da convergência de diversos vetores, entre os quais quero destacar três que me parecem mais relevantes.
Em primeiro lugar, a atual crise internacional de crédito e financiamento, ao contrário das anteriores, que se originaram nos "mercados emergentes", deriva do processo de ajustamento da economia norte-americana após o esgotamento do ciclo de expansão dos anos 90. As medidas anticíclicas adotadas -redução de impostos, aumento dos gastos militares, injeção de bilhões de dólares em empresas aéreas, estabelecimento de medidas protecionistas em diversos setores, subsídios à agricultura, entre outras- não foram suficientes para dar sustentabilidade à reativação da economia e restabelecer a confiança dos investidores, abalada pelos episódios da Enron e da WorldCom e pelas evidências de desajustes em outras corporações.
Trata-se, portanto, de uma crise profunda e, provavelmente, duradoura, cujas consequências sobre a liquidez internacional e sobre o fluxo de capitais para os países periféricos tendem a ser muito negativas. A inadimplência internacional nos primeiros cinco meses deste ano já atinge US$ 120 bilhões; quase todos os países latino-americanos tiveram suas classificações de risco aumentadas e já enfrentam dificuldades para obter financiamento externo. No caso brasileiro, a captação de recursos externos para a rolagem das dívidas das empresas já caiu a 65% das necessidades.
Em segundo lugar, os efeitos dessas turbulências externas no núcleo do capitalismo financeiro global foram amplificados artificialmente pela atitude do governo Fernando Henrique, que, diante da possibilidade de vitória de Lula nas eleições, desencadeou ofensiva para deter o avanço da oposição, usando todos os meios à disposição do governo -dos grampos ilegais ao terrorismo financeiro mais irresponsável. Apostou no caos para apresentar seu candidato -também o preferido pelos especuladores internacionais- como a única opção à crise. Repete, assim, o comportamento das elites, que, historicamente, comandaram o Brasil e que nunca titubearam em prejudicar o país e impor sofrimentos à população para preservar seu poder e seus privilégios.
Por último, embora esses vetores sejam relevantes na configuração da crise, seus efeitos desestabilizadores só são "eficazes" porque o próprio modelo econômico implantado pelo governo FHC é estruturalmente frágil e insustentável a médio prazo. São precisamente esses desequilíbrios estruturais -particularmente nas áreas fiscal e externa- que facilitam a propagação dos efeitos da crise internacional e realimentam a instabilidade econômica.
É fácil visualizar como operam tais mecanismos. De uma situação de relativo equilíbrio das contas externas em 1994, o país passou a depender fortemente da captação de recursos externos -foram mais de US$ 58 bilhões em 2001- para cobrir o déficit nas transações correntes do balanço de pagamentos e as amortizações da dívida externa. Não é possível manter um modelo de financiamento da economia desse tipo se o aumento dos passivos em dólar -o estoque de investimentos estrangeiros no país mais a dívida externa- não é compensado pelo crescimento das receitas de exportação, de forma a financiar os encargos financeiros -juros e remessa de lucros daí resultantes. Entre 1994 e 2001, com o forte crescimento do passivo externo (mais de US$ 200 bilhões), as despesas com juros e remessas de lucros aumentaram 107%, enquanto o crescimento das receitas de exportação não chegou a 34%.
Tampouco é viável manter um processo exponencial de endividamento público como o verificado nestes oito anos, decorrente principalmente dos juros elevados associados ao modelo de financiamento externo da economia. O aumento da dívida mobiliária federal foi brutal -de R$ 61,5 bilhões em dezembro de 1994 para R$ 708 bilhões em maio passado-, apesar do crescimento sem precedentes da carga tributária e da venda de cerca de 76% do patrimônio público. Com as taxas básicas de juros reais muito mais elevadas do que a taxa de crescimento do PIB real, o modelo leva necessariamente a uma deterioração da situação financeira do setor público (relação dívida/ PIB), a menos que se produzam superávits primários gigantescos e/ou que se submeta o país a um brutal ajuste recessivo. Entre 1994 e 2001, enquanto o crescimento acumulado do PIB real foi de aproximadamente 18%, a capitalização das taxas de juros reais vigentes no período atingiu mais de 144%. Ou seja, tanto pelo lado externo como pelo fiscal, o modelo é insustentável a médio prazo.
Essa fragilidade estrutural e o próprio acordo com o FMI dificultam a adoção de políticas anticíclicas, que poderiam favorecer o crescimento do PIB e da arrecadação e melhorar a situação fiscal. Assim, ficamos presos na armadilha financeira: o aumento do risco-país impede a queda da taxa de juros e eleva o câmbio, aumentando o custo fiscal da dívida interna, enquanto a crise externa e as medidas protecionistas norte-americanas limitam a expansão das exportações. Nesse contexto, não é difícil perceber que o caos prenunciado pelos especuladores e pelo governo não se originaria da mudança desse modelo econômico, mas, sim, de sua continuidade. Portanto, diferentemente do que se tenta impingir à opinião pública, o país necessita é do rompimento dessa lógica perversa. Para isso, temos de atacar os problemas fundamentais da economia real, e não nos limitarmos a administrar a agenda imposta pelos profetas do caos -os daqui e os de fora.


Aloizio Mercadante, 48, é economista e professor licenciado da PUC e da Unicamp, deputado federal por São Paulo e secretário de Relações Internacionais do Partido dos Trabalhadores.
Internet:
www.mercadante.com.br

E-mail -
dep.mercadante@camara.gov.br


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