São Paulo, domingo, 30 de junho de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LUÍS NASSIF

O nome é Gal

Outro dia, folheando a revista "IstoÉ Gente", deparei-me com uma entrevista da grande Cássia Eller, provavelmente das últimas que concedeu. Nela, a cantora falava da vida, do filho e de Gal Costa. Contava algo sabido, mas, nos últimos tempos, esquecido: Gal foi a grande inovadora da canção feminina brasileira nos anos 70.
Aí voltei para onde? Para o compartimento maior da memória, o baú da adolescência, tentando lembrar o que significou Gal Costa na música brasileira, a partir da maneira como a víamos lá na minha Poços de Caldas. Foi amor à primeira ouvida, e paixão à primeira olhada, não só da minha parte mas de toda a turma.
A bossa nova trouxera uma nova maneira de a mulher cantar, o intimismo mais light que o samba-canção, um lado joão-gilbertiano que tinha um similar muito interessante na canção francesa. Não sei se foram nossas cantoras que influenciaram as francesas, ou vice-versa. Mas, de lá e cá, havia muitas musas de voz doce, ar intelectualizado e lindas.
No Brasil pontificavam Silvinha Telles, a grande cantora do período; Astrud Gilberto, que era uma delícia, mas foi fazer carreira fora; Vanda Sá, nossa musa da República WC, de Santa Rita do Sapucaí; Gracinha Leporace, que seguiu com o marido, Sérgio Mendes, para carreira internacional; e, acima de tudo, Nara Leão, que, além de cantora, era uma das grandes referências culturais do período.
No meio do caminho apareceu Elis Regina. Passou pela fase brejeira, derramada, acabando com o pudor levemente sensual da bossa nova. Depois se tornou gradativamente mais técnica, mais jazzística, até que, no final da vida, ficou dramática, com a força de uma Edith Piaf. Mas Elis, por ser única, não conta.
Gal Costa surgiu cantando bossa nova. Apareceu lá por 1966, no Rio de Janeiro, apaulistanou-se em 1967 por conta da TV Record. No primeiro ano como profissional já se tornou a maior cantora da história da bossa nova. Quando a ouviu pela primeira vez, João Gilberto não lançou nenhuma previsão, mas uma constatação imediata: já era a maior cantora brasileira. Sua gravação de "Coração Vagabundo", de Caetano, é um clássico. Só que o movimento estava no fim.
Gal não parou aí. No final dos anos 60, a maior influência do pop internacional era Janis Joplin. Até então, o rock brasileiro conseguia ser mais adolescente que a bossa nova e menos transgressor que o baião. Depois do período Cely Campello, teve a era Vanderléia, Martinha, Silvinha (que, depois, se tornou uma cantora madura muito interessante, nas mãos do grande guitarrista e vocalista Edgard).
Quando o tropicalismo rompeu com as barreiras musicais e incorporou a guitarra, Caetano tornou-se o grande ideólogo, Gil, o grande companheiro, mas foi Gal Costa quem se tornou a voz e a imagem mais poderosa do movimento. Caetano ainda era o jovem tímido, desengonçado, que não conseguia transmitir no palco a provocação e a agressividade que trazia nas idéias. Quando franzia o cenho para parecer brabo, ficava até engraçado.
Era a doce Gal, a cantora intimista, a última e maior intérprete da bossa nova, quem surgiu como uma Janis Joplin cabocla, explodindo a voz em mil pedaços de cristal puro. Sua participação em "É Proibido Proibir" é um clássico.
Ela faz a transição para a moderna música brasileira, tornando-se imediatamente também a musa dos roqueiros. Na homenagem que recebeu de Erasmo e Roberto Carlos, em "Meu Nome é Gal", o contraponto de voz e guitarra é o momento maior do pop do período.
Os anos 70 e 80 testemunharam o nascimento de muitas Gal. A cada disco mudava a voz, a interpretação, saía do rock ao samba mais embalado, passava pelo samba exaltação, voltava para o intimismo. Cássia Eller foi beber em Gal, como foram beber todos os cantores e cantoras do pop e da MPB.
Gal chega aos 50 anos como um dos referenciais máximos da interpretação feminina na música brasileira. O país lhe deve muito. Mas ela deve algo ao país, que não pode sonegar: a fita que gravou com Raphael Rabello, a maior voz com o maior violão, e que persiste inédita por conta de inexplicáveis zangas do coração.

E-mail -
lnassif@uol.com.br



Texto Anterior: Lições contemporâneas: Os profetas do caos
Próximo Texto: Panorâmica - Risco: Net, ex-Globo Cabo, tem a nota rebaixada
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.