São Paulo, domingo, 30 de junho de 2002

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ARTIGO

Analistas não se preocupam com fundamentos, só com fofocas

JEFFREY SACHS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Quase todos os dias, descobrimos outro executivo chefe cobiçoso nos Estados Unidos, alguém que conspirou com contadores, advogados e banqueiros para fraudar o público investidor.
Mas, para além dos escândalos, o público deveria se conscientizar mais sobre a natureza errática dos mercados financeiros atuais. As taxas de câmbio e os preços dos mercados de ações apresentam desvios enormes quanto aos valores de longo prazo em termos de fundamentos, o que pode causar deslocamentos sérios na economia real -que envolve empregos, produção e investimento. E no entanto os analistas financeiros que discutem essas tendências na imprensa não as vêm avaliando de maneira realista.
Tomem por exemplo o caso do dólar dos Estados Unidos, cujo valor diante do euro está agora despencando. Da metade dos anos 90 até recentemente, o dólar manteve alta vigorosa diante das moedas européias em geral. Quando o euro foi lançado, em janeiro de 1999, era negociado a US$ 1,17. Depois, perdeu valor constantemente e atingiu a cotação mínima de 83 centavos de dólar, antes de voltar, nas últimas semanas, praticamente à paridade com a moeda norte-americana.
Para os economistas acadêmicos, a recente ascensão do euro não constitui surpresa. As taxas de câmbio das moedas têm a tendência de retornar às suas médias de longo prazo, depois de desvios consideráveis. Assim, a enorme força do dólar nos últimos anos implicava uma reversão, um dia. Essa reversão está em curso.
Evidentemente, se duas economias têm índices de inflação persistentemente diferentes, a taxa de câmbio entre suas moedas não tenderá a retornar ao seu nível histórico. Mas os índices de inflação nos Estados Unidos e na Europa vêm sendo semelhantes.
É também possível que a taxa de câmbio não retorne à sua média de longo curso se uma economia for atingida por uma grande mudança estrutural. Mas essas mudanças ocorrem com menos frequência do que as pessoas costumam supor ou alegar. O passado, se interpretado cuidadosamente, continua portanto a ser um bom guia para o futuro.
No entanto, quando ouvimos os especialistas em finanças, muitas vezes parece que a história já não importa. Quando o dólar começou a subir diante do euro depois de 1999, os analistas de investimentos surgiram com uma explicação depois da outra para explicar que a tendência continuaria.
Eles elogiaram o vigor da economia dos EUA, criticaram a suposta debilidade da economia européia e alegaram que o euro estava sendo mal administrado. Para resumir, eles exageraram na interpretação de movimentos de mercado de curto prazo, retratando-os como se fossem tendências de prazo mais longo.
Infelizmente, os analistas financeiros quase sempre têm treinamento deficiente em economia. O trabalho deles é dizer algo inteligente diante das câmeras de televisão. Eles não trabalham com os fundamentos, mas com as últimas fofocas e manias. Evidentemente, se essas manias forem comuns e não durarem, um investidor inteligente pode lucrar com elas, digamos vendendo dólares a descoberto nos últimos meses.

Mercados irracionais
Há investidores que se saem bem dessas operações, mas elas são mais difíceis do que parece. Como advertiu o economista britânico John Maynard Keynes 75 anos atrás, "os mercados podem se manter irracionais por mais tempo do que você consegue se manter solvente". Em outras palavras, mesmo que você saiba que o dólar um dia cairá, pode falir antes que prove que está certo. Basta que as pessoas continuem a acreditar que o dólar subirá.
Assim, é mais seguro acompanhar a multidão, mesmo que você acredite que ela está correndo na direção errada. Pela mesma razão, Keynes comparou o mercado de ações a um concurso de beleza em que cada juiz julga não a mais bela concorrente de acordo com sua opinião, mas de acordo com o que ele considera que os demais juízes escolherão.
De fato, quando os preços das ações norte-americanas atingiram patamares astronômicos no final dos anos 90, os especialistas e os banqueiros de investimento ofereceram uma miríade de explicações e teorias tolas. Sabemos agora que algumas dessas explicações eram fraudulentas.
Muitas corretoras tentavam elevar os honorários que os bancos de investimentos a que estão ligadas faturavam junto a empresas cujas ações elas empurravam para um público inocente. Mas em termos mais gerais, os especialistas simplesmente acompanham a multidão. À medida que os preços das ações disparavam, eles inventavam teorias para justificar a alta. Uma análise mais profunda lhes teria informado, em lugar disso, que a alta seria curta.
Alguns poucos analistas acertaram. O economista Robert Schiller, de Yale, explicou com clareza por que os preços das ações norte-americanas cairiam. Martin Wolf, do "Financial Times", conquistou distinção ao alertar, corretamente, que os mercados de ações norte-americanos terminariam voltando para níveis mais históricos.
Mas os custos econômicos reais impostos pela mentalidade de rebanho foram elevados. O boom exagerado nas ações norte-americanas causou excesso de investimento nos EUA e uma recessão no país quando a bolha do mercado estourou. O vigor do dólar, da mesma maneira, distorceu as decisões de investimento, e a mesma espécie de oscilação exagerada das taxas de câmbio nos mercados emergentes contribuiu para os ciclos de expansão e compressão na Ásia e na América Latina durante os últimos cinco anos.
Assim, o que deveria ser feito? É evidente que os principais bancos de investimento deveriam se tornar mais sérios quanto ao treinamento e licenciamento de seus analistas, a fim de prover conhecimento em lugar de asneiras, nos pronunciamentos públicos deles.
A imprensa responsável deveria averiguar as tendências econômicas com espírito mais crítico, em lugar de ceder à opinião de massa. E os economistas acadêmicos deveriam demonstrar mais firmeza na explicação de como os preços dos mercados financeiros refletem os valores econômicos fundamentais, mesmo que isso não seja necessariamente verdadeiro no curto prazo. Por fim, regulamentação mais severa dos mercados financeiros talvez pudesse retardar parte dos fluxos de dinheiro quente que exageram as contrações e as expansões.
Infelizmente, Keynes enfatizou essas mesmas deficiências muito tempo atrás, de modo que não devemos esperar mudanças miraculosas de comportamento agora.
Investidor, acautele-se!


Jeffrey Sachs é diretor do Centro de Desenvolvimento Internacional da Universidade Harvard (EUA).


Tradução de Paulo Migliacci

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