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OPINIÃO ECONÔMICA
O fetiche do dinheiro
DOMÉRIO NASSAR DE OLIVEIRA
O caráter de fetiche do dinheiro, que obsedia a atual
política monetária, gera um feitiço
que precisa ser exorcizado. Se não,
continuará nos obrigando a capengar no crescimento, tomados
pela mesma pregação que tem servido lucro fácil aos bancos.
Há décadas o Brasil se arrasta
subserviente a velhos sofismas teóricos que, como ervas daninhas ao
pensamento, sempre rebrotam no
campo estratégico da política monetária.
O ideário popular, fecundo ao
aliciamento, acaba se conformando às crescentes receitas de juros
que o Tesouro saca dos contribuintes para pagar à competência
dos banqueiros. Amarga resignação, imaginando só poder conter
os preços deprimindo a demanda
e o padrão da vida nacional. Expandir oferta para também reduzir
inflação e distribuir riqueza é algo
que se supõe impossível enquanto
não houver maior esforço para geração de poupança, o que sempre
adia a fruição de dias melhores.
A agenda de austeridade prescrita é velha conhecida: "Poupar para
poder investir, reformas para recuperar receitas e economizar gastos
para fazer superávits que diminuam a dívida pública e permitam
baixar os juros etc. etc.". Como nada pode ser feito se não sobram recursos no orçamento, reitera-se a
rendição e o reconhecimento de
impotência socioeconômica ante a
divindade que nos precede: o dinheiro.
O novo governo, na mesma toada do anterior, mal assumiu e também se declarou à míngua. Condicionando sua política econômica
ao caixa que busca amealhar, revela-se vítima de um fetiche contra o
qual se supunha estar vacinado:
atribui ao dinheiro um poder associado a uma coisa inanimada, predefinida, preexistente, sem entendê-lo como decorrência de um
processo, do movimento mais amplo do crédito associado às relações de produção e consumo. Inverte a premissa, assumindo a precondição do dinheiro para ativar
essas relações, quando este pode e
deve ser produto da própria atividade econômica.
Uma transição macroeconômica
gradual, cuidadosa mas progressista, deveria decifrar conceitos
capciosos que, como apliques de
retardamento, embotam o raciocínio e impedem uma gestão competente do crédito para dar autonomia ao país.
Poderia começar por anunciar
que o sistema bancário, como produto histórico da própria ação e
pensamento humanos dirigidos à
mobilização de produção e consumo, nunca foi mero intermediário
de dinheiro, não mais o capta do
público externo e, já faz tempo,
opera como seu emissor pleno.
Deveria partir do princípio de
que todo o dinheiro movimentado
por empresas e trabalhadores é
hoje o próprio crédito, emitido e
escriturado pelos bancos em arquivos eletrônicos na rede fechada
de seus computadores. Dinheiro
eletrônico com origem no repasse
de pagamentos do governo, nas
próprias despesas do sistema bancário e, principalmente, na contratação de empréstimos com o público. Afora o pouco desse dinheiro virtual que convertemos em
moeda física para manuseio, seu
grande volume permanece sempre
interno àquele sistema emissor, e é
completa ingenuidade invocar a
preexistência de poupança para
prover empréstimos a investimentos. A título de lembrete, poderia
esclarecer que os recursos que
muitos proclamam necessários
para revitalizar o mercado de capitais sempre terão por origem -e
sempre permanecerão- em algum banco do sistema, sendo ilusório imaginá-los como nova fonte
alternativa de financiamentos.
Daí que um governo com a responsabilidade histórica de liberar
o Brasil do jugo financeiro, da ditadura real sob a democracia formal,
precisaria entender que a precondição para o financiamento dos investimentos das empresas é garantir uma situação macroeconômica
que mantenha seu faturamento
com margens que retornem o capital a empatar. Fato indispensável, aliás, para que os bancos possam lhes adicionar empréstimos
nesse sentido. Empréstimos emitidos como crédito novo ou reciclados a partir de créditos de emissão
anterior, sempre internos ao sistema bancário, e que, sendo dirigidos ao aumento da capacidade
produtiva, da oferta, deveriam
contar com o aporte de recursos
públicos para diferenciar e adequar taxas de juros ao retorno esperado.
Uma transição progressista, sem
descuidar de elevar juros quando
fosse realmente necessário frear
circulação especulativa, inflacionária, dos créditos eletrônicos em
suspenso nos fundos remunerados, deveria, por outro lado, cuidar
de prover taxas mais baixas, viáveis e competitivas ao crédito que
se destinasse à produção. Especialmente àquele com endereço certo
à expansão da oferta dos setores
que nos acrescentem liberdade
cambial.
É pura alienação persistir na
emissão de títulos para pagar volume crescente de juros estéreis na
dívida pública encarteirada pelos
bancos sem alocar maior volume
de títulos para a equalização de taxas nos empréstimos que os bancos públicos precisariam destinar
aos investimentos produtivos. Será que a inflação, como evolução
dos preços derivados do jogo entre
oferta e demanda, também não
deve ser contida por expansão da
oferta? Por outro lado, será que o
acréscimo de produto vinculado a
esses investimentos não coletaria,
mais à frente, impostos além dos
gastos com a equalização, definindo um caminho de desenvolvimento mais sólido para a recuperação orçamentária e para a redução da relação dívida/produto?
É triste ver gente graduada no escalão governamental reproduzindo sofismas melífluos, que acomodam falsas justificativas aos interesses do establishment financeiro.
É frequente a afirmação de que os
juros não podem cair se não se reduzir a dívida pública. Como se as
taxas resultassem da interação entre oferta e demanda de dinheiro
externo ao sistema bancário. Como se o giro da dívida agigantada
as enrijecesse por roubar parte de
um estoque monetário preexistente no país. Como se os bancos não
fossem emissores e não contivessem o próprio dinheiro/crédito
que emitem. Como se a colocação
dos títulos da dívida tivesse a ver
com esse dinheiro e não se restringisse às reservas de curso interno
aos pagamentos interbancários.
Mela-se qualquer possibilidade de
entendimento não se observando
ser o custo arbitrado para essas reservas pelo Banco Central que determina a taxa de juros oferecida
na venda daqueles títulos, e não o
contrário, como se divulga. Afinal,
será que o Copom já não demonstrou que as taxas são produto de
seu puro arbítrio, podendo colocá-las onde bem entender?
Se exorcizar o encosto financista,
o governo compreenderá que o
que mais interessa ao país é promover e administrar uma urgente
expansão qualificada dos empréstimos do sistema bancário, especialmente dos bancos públicos.
Perscrutando abaixo da superfície
coisificada do mundo, poderá inverter a recessão que se avoluma e
evoluir no sentido de incentivar
um desenvolvimento econômico
com sintonia mais fina, baseado na
gestão de estímulos à emissão ou à
reciclagem de dinheiro/crédito na
forma de empréstimos à produção
pela rede bancária. Por meio dessa
rede, capilarizando a aferição de
risco microeconômico dos negócios, buscar-se-ia adequar aquela
emissão ou reciclagem à geração
de produtos que teriam alta probabilidade de provar valor em mercado e que, ao quitarem posteriormente o empréstimo que os viabilizou, extinguiriam o dinheiro/crédito que encetou seu ciclo de processamento.
A política monetária se redescobriria indutora de um constante
movimento de emissão, circulação
e extinção de dinheiro eletrônico
que resultaria em produto e em geração de impostos ao Tesouro, dissipando o feitiço da suposta falta
de dinheiro que subverte a ordem
necessária ao progresso nacional.
O Brasil poderia reconquistar soberania para a ocupação competitiva dos recursos reais que tem de
sobra e para a satisfação de uma
demanda popular, longamente reprimida pelos interesses financeiros associados ao fetiche do dinheiro.
Domério Nassar de Oliveira, 46, é
economista e diretor da Receita
Municipal de São Bernardo do Campo.
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