UOL


São Paulo, segunda-feira, 30 de junho de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

OPINIÃO ECONÔMICA

O fetiche do dinheiro

DOMÉRIO NASSAR DE OLIVEIRA

O caráter de fetiche do dinheiro, que obsedia a atual política monetária, gera um feitiço que precisa ser exorcizado. Se não, continuará nos obrigando a capengar no crescimento, tomados pela mesma pregação que tem servido lucro fácil aos bancos.
Há décadas o Brasil se arrasta subserviente a velhos sofismas teóricos que, como ervas daninhas ao pensamento, sempre rebrotam no campo estratégico da política monetária.
O ideário popular, fecundo ao aliciamento, acaba se conformando às crescentes receitas de juros que o Tesouro saca dos contribuintes para pagar à competência dos banqueiros. Amarga resignação, imaginando só poder conter os preços deprimindo a demanda e o padrão da vida nacional. Expandir oferta para também reduzir inflação e distribuir riqueza é algo que se supõe impossível enquanto não houver maior esforço para geração de poupança, o que sempre adia a fruição de dias melhores.
A agenda de austeridade prescrita é velha conhecida: "Poupar para poder investir, reformas para recuperar receitas e economizar gastos para fazer superávits que diminuam a dívida pública e permitam baixar os juros etc. etc.". Como nada pode ser feito se não sobram recursos no orçamento, reitera-se a rendição e o reconhecimento de impotência socioeconômica ante a divindade que nos precede: o dinheiro.
O novo governo, na mesma toada do anterior, mal assumiu e também se declarou à míngua. Condicionando sua política econômica ao caixa que busca amealhar, revela-se vítima de um fetiche contra o qual se supunha estar vacinado: atribui ao dinheiro um poder associado a uma coisa inanimada, predefinida, preexistente, sem entendê-lo como decorrência de um processo, do movimento mais amplo do crédito associado às relações de produção e consumo. Inverte a premissa, assumindo a precondição do dinheiro para ativar essas relações, quando este pode e deve ser produto da própria atividade econômica.
Uma transição macroeconômica gradual, cuidadosa mas progressista, deveria decifrar conceitos capciosos que, como apliques de retardamento, embotam o raciocínio e impedem uma gestão competente do crédito para dar autonomia ao país.
Poderia começar por anunciar que o sistema bancário, como produto histórico da própria ação e pensamento humanos dirigidos à mobilização de produção e consumo, nunca foi mero intermediário de dinheiro, não mais o capta do público externo e, já faz tempo, opera como seu emissor pleno.
Deveria partir do princípio de que todo o dinheiro movimentado por empresas e trabalhadores é hoje o próprio crédito, emitido e escriturado pelos bancos em arquivos eletrônicos na rede fechada de seus computadores. Dinheiro eletrônico com origem no repasse de pagamentos do governo, nas próprias despesas do sistema bancário e, principalmente, na contratação de empréstimos com o público. Afora o pouco desse dinheiro virtual que convertemos em moeda física para manuseio, seu grande volume permanece sempre interno àquele sistema emissor, e é completa ingenuidade invocar a preexistência de poupança para prover empréstimos a investimentos. A título de lembrete, poderia esclarecer que os recursos que muitos proclamam necessários para revitalizar o mercado de capitais sempre terão por origem -e sempre permanecerão- em algum banco do sistema, sendo ilusório imaginá-los como nova fonte alternativa de financiamentos.
Daí que um governo com a responsabilidade histórica de liberar o Brasil do jugo financeiro, da ditadura real sob a democracia formal, precisaria entender que a precondição para o financiamento dos investimentos das empresas é garantir uma situação macroeconômica que mantenha seu faturamento com margens que retornem o capital a empatar. Fato indispensável, aliás, para que os bancos possam lhes adicionar empréstimos nesse sentido. Empréstimos emitidos como crédito novo ou reciclados a partir de créditos de emissão anterior, sempre internos ao sistema bancário, e que, sendo dirigidos ao aumento da capacidade produtiva, da oferta, deveriam contar com o aporte de recursos públicos para diferenciar e adequar taxas de juros ao retorno esperado.
Uma transição progressista, sem descuidar de elevar juros quando fosse realmente necessário frear circulação especulativa, inflacionária, dos créditos eletrônicos em suspenso nos fundos remunerados, deveria, por outro lado, cuidar de prover taxas mais baixas, viáveis e competitivas ao crédito que se destinasse à produção. Especialmente àquele com endereço certo à expansão da oferta dos setores que nos acrescentem liberdade cambial.
É pura alienação persistir na emissão de títulos para pagar volume crescente de juros estéreis na dívida pública encarteirada pelos bancos sem alocar maior volume de títulos para a equalização de taxas nos empréstimos que os bancos públicos precisariam destinar aos investimentos produtivos. Será que a inflação, como evolução dos preços derivados do jogo entre oferta e demanda, também não deve ser contida por expansão da oferta? Por outro lado, será que o acréscimo de produto vinculado a esses investimentos não coletaria, mais à frente, impostos além dos gastos com a equalização, definindo um caminho de desenvolvimento mais sólido para a recuperação orçamentária e para a redução da relação dívida/produto?
É triste ver gente graduada no escalão governamental reproduzindo sofismas melífluos, que acomodam falsas justificativas aos interesses do establishment financeiro. É frequente a afirmação de que os juros não podem cair se não se reduzir a dívida pública. Como se as taxas resultassem da interação entre oferta e demanda de dinheiro externo ao sistema bancário. Como se o giro da dívida agigantada as enrijecesse por roubar parte de um estoque monetário preexistente no país. Como se os bancos não fossem emissores e não contivessem o próprio dinheiro/crédito que emitem. Como se a colocação dos títulos da dívida tivesse a ver com esse dinheiro e não se restringisse às reservas de curso interno aos pagamentos interbancários. Mela-se qualquer possibilidade de entendimento não se observando ser o custo arbitrado para essas reservas pelo Banco Central que determina a taxa de juros oferecida na venda daqueles títulos, e não o contrário, como se divulga. Afinal, será que o Copom já não demonstrou que as taxas são produto de seu puro arbítrio, podendo colocá-las onde bem entender?
Se exorcizar o encosto financista, o governo compreenderá que o que mais interessa ao país é promover e administrar uma urgente expansão qualificada dos empréstimos do sistema bancário, especialmente dos bancos públicos. Perscrutando abaixo da superfície coisificada do mundo, poderá inverter a recessão que se avoluma e evoluir no sentido de incentivar um desenvolvimento econômico com sintonia mais fina, baseado na gestão de estímulos à emissão ou à reciclagem de dinheiro/crédito na forma de empréstimos à produção pela rede bancária. Por meio dessa rede, capilarizando a aferição de risco microeconômico dos negócios, buscar-se-ia adequar aquela emissão ou reciclagem à geração de produtos que teriam alta probabilidade de provar valor em mercado e que, ao quitarem posteriormente o empréstimo que os viabilizou, extinguiriam o dinheiro/crédito que encetou seu ciclo de processamento.
A política monetária se redescobriria indutora de um constante movimento de emissão, circulação e extinção de dinheiro eletrônico que resultaria em produto e em geração de impostos ao Tesouro, dissipando o feitiço da suposta falta de dinheiro que subverte a ordem necessária ao progresso nacional. O Brasil poderia reconquistar soberania para a ocupação competitiva dos recursos reais que tem de sobra e para a satisfação de uma demanda popular, longamente reprimida pelos interesses financeiros associados ao fetiche do dinheiro.


Domério Nassar de Oliveira, 46, é economista e diretor da Receita Municipal de São Bernardo do Campo.


Texto Anterior: Nova regra manterá contratos, diz governo
Próximo Texto: Dicas: Corretora sugere aplicar em papel de setores químico e de celulose
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.