São Paulo, domingo, 30 de julho de 2000


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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
Memórias dos impérios

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES

Quem fala em império tem de levar em conta a expansão territorial e lembrar a colonização, as migrações forçadas, a escravidão e as guerras. Enfim, tudo aquilo que dizimou populações inteiras ao longo dos séculos e reduziu a um quintal, um terreiro, um templo, uma cozinha, o espaço físico e cultural de suas nações perdidas.
A luta pelos mercados, pelo poder e pelo dinheiro atravessa e corrompe as cúpulas dirigentes de todos os impérios que submetem e exploram os povos colonizados. Mas nenhuma luta imperial produz os efeitos irracionais, catastróficos e duradouros das guerras étnico-religiosas que atormentaram por séculos os povos dos santos impérios do Deus único. Esse foi se estilhaçando em várias filiais judaicas, árabes e cristãs, reproduzindo até hoje o terror nas várias esquinas de antigos impérios: desde as franjas do Mediterrâneo, no Oriente Médio, passando pela Europa Oriental até as fronteiras asiáticas da atual federação russa.
Desde a Primeira Revolução Industrial inglesa a versão moderna dos impérios anglo-saxônicos é supostamente não sagrada, mas seus propósitos não são meramente mercantis. Sua missão civilizatória é a luta contra o atraso. Essa, querendo ou não os conquistadores, é sempre acompanhada de uma visão racista e etnocêntrica, tendente a liquidar ou marginalizar as "minorias" e "os povos atrasados" como irrecuperáveis para a "modernidade". É também de praxe submeter as elites locais pela corrupção e a cooptação às boas causas do centro imperial. O império inglês, apesar do seu desenvolvimento tecnológico, foi o de menor duração entre os grandes impérios onde o "sol nunca se punha". A versão contemporânea da "pax americana", às voltas com os restos de todos os impérios passados do Ocidente e do Oriente Médio, ainda não se propôs a enfrentar os dois impérios mais antigos do Extremo Oriente: a China e a Índia.
O problema da anatomia da expansão imperial reside no cruzamento perverso de três categorias históricas -território, povo e mercado- com as suas máscaras paralelas das idéias de pátria, nação e dinheiro. A memória do Deus único, seja ele o impronunciável, seja o fetiche do dinheiro como medida frágil do valor de troca, possui suas tribos sacerdotais, suas burocracias secretas permanentes que requerem sacrifícios humanos periódicos. Para os povos, submetidos ou supostamente vitoriosos, a história das guerras, dos genocídios e das reformas monetárias não se repete como farsa, mas como tragédia.
As lutas ideológicas e territoriais sempre foram alimentadas pelo dinheiro das classes dominantes das periferias e dos centros imperiais. Já as burocracias civis e militares ligadas à segurança do território, ao controle dos suprimentos estratégicos (das armas à comida) e ao controle ideológico sempre adquirem um caráter "sagrado" ou "patriótico". Para as classes médias ilustradas, porém, os regimes mais autoritários usam um tratamento especial do que é "politicamente ou culturalmente correto", liquidando, desterrando ou simplesmente cooptando os seus elementos mais agressivos ou destacados. Para as elites assimiladas ao império, a memória da colonização perdeu-se. As "politicamente incorretas" reescrevem continuamente as suas memórias e a história do império.
Curiosamente, a memória da cultura de dois impérios ocidentais é ressuscitada periodicamente pelas elites intelectuais do mundo em suas pretensões de universalizar não apenas a mercadoria, mas o direito dos povos. Mais de três quartas partes do pensamento jurídico moderno que diz respeito ao "direito dos cidadãos" estão baseadas em alguma versão modernizada do Direito Romano e do Código de Napoleão. Foram, no entanto, impérios "revolucionários" que serviram de fundamento a toda civilização ocidental. Pouco duradouros quando comparados com os grandes impérios antigos de sua época: o chinês e o russo, cuja durabilidade desafia os séculos e as revoluções.
Em 1900, até o imperador da Alemanha, citando os hunos, dava instruções sobre a liquidação da China: "Não façam prisioneiros. Abram caminho para a cultura de uma vez por todas!". Os "boxers" -uma sociedade secreta de chineses que lutavam com os punhos- foram todos liquidados. Os seus rabichos foram cortados e levados como suvenires por quase todos os mercadores dos vários impérios, não apenas aqueles que vendiam bugigangas modernas mas também os que vendiam ópio como os ingleses.
Para quem esteja com pena de si mesmo, por ser habitante de um imenso país colonizado por Portugal, achar que o nosso povo perdeu o século americano (?) e se converteu em uma mísera periferia do império global (?), recomendo duas leituras sobre a história imperial do século 20.
O "Imperium", do jornalista polonês Ryszard Kapuscinski (Cia. das Letras), trata de suas viagens pelo império russo entre o começo e o fim do "socialismo real". Para quem for de cultura humanística européia ou adepto do "romantismo alemão" (além naturalmente da elite universitária mais velha da USP e da ex-Universidade do Brasil), recomendo o último livro de Gunther Grass, Prêmio Nobel de 1999, "Meu Século" (Editora Record). Ele abre com seu conto de "1900" -o ano da liquidação dos "boxers" na praça Tiannamen. Finalmente, para completar, recomendo a prata da casa, o livro de Emir Sader "Século XX: uma biografia não autorizada - o século do imperialismo" (Editora Fundação Perseu Abramo), que dá conta das guerras imperiais que ocorreram no século 20 e da estimativa dos mortos delas resultantes.
Li esses livros durante uma semana de férias que passei sem olhar os jornais, não acompanhando por isso o descrédito do nosso "procônsul", aqui no nosso território e no centro do império. Acompanhei apenas a vitória por 3 a 1 dos meninos do nosso futebol sobre a Argentina. Seguramente tudo isso deve ter contribuído para melhorar o meu humor. Depois de entregar este artigo, vou festejar com os amigos os 80 anos de Celso Furtado, que ensinou os de minha geração em diante a avaliarem corretamente o passado e a lutarem em vida para que não se perca a memória e a perspectiva histórica.


Maria da Conceição Tavares, 70, economista, é professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professora associada da Universidade de Campinas (Unicamp) e ex-deputada federal (PT-RJ).
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