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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
Memórias dos impérios
MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES
Quem fala em império tem
de levar em conta a expansão
territorial e lembrar a colonização,
as migrações forçadas, a escravidão e as guerras. Enfim, tudo aquilo que dizimou populações inteiras
ao longo dos séculos e reduziu a
um quintal, um terreiro, um templo, uma cozinha, o espaço físico e
cultural de suas nações perdidas.
A luta pelos mercados, pelo poder e pelo dinheiro atravessa e corrompe as cúpulas dirigentes de todos os impérios que submetem e
exploram os povos colonizados.
Mas nenhuma luta imperial produz os efeitos irracionais, catastróficos e duradouros das guerras étnico-religiosas que atormentaram
por séculos os povos dos santos impérios do Deus único. Esse foi se estilhaçando em várias filiais judaicas, árabes e cristãs, reproduzindo
até hoje o terror nas várias esquinas de antigos impérios: desde as
franjas do Mediterrâneo, no Oriente Médio, passando pela Europa
Oriental até as fronteiras asiáticas
da atual federação russa.
Desde a Primeira Revolução Industrial inglesa a versão moderna
dos impérios anglo-saxônicos é supostamente não sagrada, mas seus
propósitos não são meramente
mercantis. Sua missão civilizatória
é a luta contra o atraso. Essa, querendo ou não os conquistadores, é
sempre acompanhada de uma visão racista e etnocêntrica, tendente
a liquidar ou marginalizar as "minorias" e "os povos atrasados" como irrecuperáveis para a "modernidade". É também de praxe submeter as elites locais pela corrupção e a cooptação às boas causas
do centro imperial. O império inglês, apesar do seu desenvolvimento tecnológico, foi o de menor duração entre os grandes impérios
onde o "sol nunca se punha". A
versão contemporânea da "pax
americana", às voltas com os restos
de todos os impérios passados do
Ocidente e do Oriente Médio, ainda não se propôs a enfrentar os
dois impérios mais antigos do Extremo Oriente: a China e a Índia.
O problema da anatomia da expansão imperial reside no cruzamento perverso de três categorias
históricas -território, povo e mercado- com as suas máscaras paralelas das idéias de pátria, nação e
dinheiro. A memória do Deus único, seja ele o impronunciável, seja o
fetiche do dinheiro como medida
frágil do valor de troca, possui suas
tribos sacerdotais, suas burocracias
secretas permanentes que requerem sacrifícios humanos periódicos. Para os povos, submetidos ou
supostamente vitoriosos, a história
das guerras, dos genocídios e das
reformas monetárias não se repete
como farsa, mas como tragédia.
As lutas ideológicas e territoriais
sempre foram alimentadas pelo dinheiro das classes dominantes das
periferias e dos centros imperiais.
Já as burocracias civis e militares
ligadas à segurança do território,
ao controle dos suprimentos estratégicos (das armas à comida) e ao
controle ideológico sempre adquirem um caráter "sagrado" ou "patriótico". Para as classes médias
ilustradas, porém, os regimes mais
autoritários usam um tratamento
especial do que é "politicamente ou
culturalmente correto", liquidando, desterrando ou simplesmente
cooptando os seus elementos mais
agressivos ou destacados. Para as
elites assimiladas ao império, a
memória da colonização perdeu-se. As "politicamente incorretas"
reescrevem continuamente as suas
memórias e a história do império.
Curiosamente, a memória da
cultura de dois impérios ocidentais
é ressuscitada periodicamente pelas elites intelectuais do mundo em
suas pretensões de universalizar
não apenas a mercadoria, mas o
direito dos povos. Mais de três
quartas partes do pensamento jurídico moderno que diz respeito ao
"direito dos cidadãos" estão baseadas em alguma versão modernizada do Direito Romano e do Código
de Napoleão. Foram, no entanto,
impérios "revolucionários" que
serviram de fundamento a toda civilização ocidental. Pouco duradouros quando comparados com
os grandes impérios antigos de sua
época: o chinês e o russo, cuja durabilidade desafia os séculos e as revoluções.
Em 1900, até o imperador da Alemanha, citando os hunos, dava
instruções sobre a liquidação da
China: "Não façam prisioneiros.
Abram caminho para a cultura de
uma vez por todas!". Os "boxers"
-uma sociedade secreta de chineses que lutavam com os punhos-
foram todos liquidados. Os seus rabichos foram cortados e levados como suvenires por quase todos os
mercadores dos vários impérios,
não apenas aqueles que vendiam
bugigangas modernas mas também os que vendiam ópio como os
ingleses.
Para quem esteja com pena de si
mesmo, por ser habitante de um
imenso país colonizado por Portugal, achar que o nosso povo perdeu
o século americano (?) e se converteu em uma mísera periferia do
império global (?), recomendo duas
leituras sobre a história imperial
do século 20.
O "Imperium", do jornalista polonês Ryszard Kapuscinski (Cia.
das Letras), trata de suas viagens
pelo império russo entre o começo e
o fim do "socialismo real". Para
quem for de cultura humanística
européia ou adepto do "romantismo alemão" (além naturalmente
da elite universitária mais velha da
USP e da ex-Universidade do Brasil), recomendo o último livro de
Gunther Grass, Prêmio Nobel de
1999, "Meu Século" (Editora Record). Ele abre com seu conto de
"1900" -o ano da liquidação dos
"boxers" na praça Tiannamen. Finalmente, para completar, recomendo a prata da casa, o livro de
Emir Sader "Século XX: uma biografia não autorizada - o século do
imperialismo" (Editora Fundação
Perseu Abramo), que dá conta das
guerras imperiais que ocorreram
no século 20 e da estimativa dos
mortos delas resultantes.
Li esses livros durante uma semana de férias que passei sem
olhar os jornais, não acompanhando por isso o descrédito do nosso
"procônsul", aqui no nosso território e no centro do império. Acompanhei apenas a vitória por 3 a 1
dos meninos do nosso futebol sobre
a Argentina. Seguramente tudo isso deve ter contribuído para melhorar o meu humor. Depois de entregar este artigo, vou festejar com
os amigos os 80 anos de Celso Furtado, que ensinou os de minha geração em diante a avaliarem corretamente o passado e a lutarem
em vida para que não se perca a
memória e a perspectiva histórica.
Maria da Conceição Tavares, 70, economista, é professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
professora associada da Universidade de
Campinas (Unicamp) e ex-deputada federal (PT-RJ).
www.abordo.com.br/mctavares
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mctavares@cdsid.com.br
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