São Paulo, quarta-feira, 30 de agosto de 2000


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OPINIÃO ECONÔMICA

País-laboratório

ANTONIO BARROS DE CASTRO

Nada como uma boa andada por este país-laboratório para sacudir e renovar idéias. Estou chegando de Manaus, trazendo fortes impressões e algumas perplexidades que pretendo compartilhar com o leitor.
O equívoco mais frequente acerca da Zona Franca de Manaus consiste em supor que a indústria ali existente é do tipo indústria de maquilagem. Alguns insistem mesmo em se referir à área como "entreposto". Na realidade, contudo, ainda quando tendo início com a mera finalização de produtos, as atividades das empresas da Zona Franca frequentemente evoluem para a montagem propriamente dita -e muitas vezes alcançam a fabricação.
Um exemplo extraordinário pode ser encontrado na empresa Moto Honda. Seu gigantesco parque produtivo compreende fundição (inclusive do motor), usinagem, solda, estamparia, montagem e teste. Em resumo, parte-se, no início do processo, de barras de alumínio, bobinas de aço e polipropileno granulado: no final, saem motocicletas. E, como se não bastasse a integração vertical da fábrica, nada menos que 12 fornecedores já se encontram estabelecidos em Manaus, operando sincronizados com a cadeia capitaneada pela Moto Honda. A rigor, e segundo informação divulgada pela empresa, o coeficiente de nacionalização do modelo 125 Titan (56% da produção) atinge excepcionais 96,9%. É bom lembrar, a esse propósito, que, no México, e segundo depoimento de um membro da comitiva do presidente Fox, a chamada "indústria da maquila" traz do exterior entre um mínimo de 93% e um máximo de 97% dos insumos, partes e peças que utiliza.
O segundo equívoco consiste na noção, amplamente difundida, de que, dada a grande soma de benefícios oferecidos na região, a indústria ali existente é algo artificial. Convenhamos, inicialmente, que, sem os excepcionais estímulos oferecidos na área, as indústrias, em regra, não teriam escolhido Manaus. O equívoco aqui reside, no entanto, em permanecer fixado nesse, digamos, pecado original. Há, em suma, que levar adiante a análise, indagando-se sobre o destino das empresas ali chegadas. Verifica-se o surgimento de uma cultura manufatureira, comprovada pela aptidão de gerentes e trabalhadores para dominar e adaptar os processos produtivos? Está sendo reduzida a distância em relação às melhores técnicas internacionais? Exportações começam a ser realizadas? Novos investimentos estão sendo planejados? Na medida em que essas perguntas obtenham respostas positivas, estarão sendo engendradas vantagens competitivas e a experiência caminha em direção à normalidade. A redução das importações brasileiras de eletrônicos de consumo de US$ 623 milhões para US$ 189 milhões entre 1998 e 2000 (janeiro a junho), acompanhada de um salto das exportações de US$ 371 milhões para US$ 1.437 milhão (mais uma vez janeiro a junho), parece falar alto a esse respeito.
A terceira grave acusação usualmente feita à indústria de Manaus é que, ao transferir para aquela (remota) área grande parte da eletrônica de consumo, foi irremediavelmente fracionado e fragilizado o complexo eletrônico nacional. O argumento contém, sem dúvida, uma dose de verdade. Mas é preciso ter em conta outros aspectos da questão. Tomarei apenas um: a questão ecológica.
A eletrônica é uma indústria em muitos sentidos leve. Não é por outra razão que a guinada do Japão (após o choque do petróleo) em direção à eletrônica foi anunciada como uma mudança para a "estratégia da grama". Ora, se a base de recursos naturais é notoriamente pobre no Japão, ela pode ser tida como exuberante, porém frágil -e até recentemente pouco conhecida- na Amazônia. Diante dessa complexa questão, a eletrônica apresenta a vantagem de pouco se relacionar com a base local de recursos naturais e, portanto, pouca pressão exercer sobre o ecossistema local. Isso fica óbvio quando a contrastamos com a mineração, a metalurgia, a mecânica ou a química pesada. E as consequências dessa contraposição podem ser apreciadas no contraste entre o ocorrido no Amazonas -onde o surgimento de atividades modernas e dotadas de amplo potencial de crescimento econômico deixou praticamente intacta a natureza- com o verificado no Pará, sob a liderança de atividades minerometalúrgicas. Sei bem que o tema é fértil em controvérsias. Mas o que está aqui sendo sugerido é que o pólo de Manaus -além de gerar renda, emprego e contribuir para a formação de uma cultura industrial na região- ajudou a desviar a busca de oportunidades de lucro para atividades que não agridem o delicado ecossistema da região. Enquanto isso, aumentou o conhecimento das características da área, estando o país hoje (presumivelmente) apto a induzir o avanço de novas atividades, destacando-se entre elas as centradas na biotecnologia, a mais óbvia vocação da área. E isso nos remete a um último ponto.
Quais seriam as oportunidades de lucro facilmente constatáveis na Amazônia dos anos 1970? A extração de madeira, o garimpo, a caça de espécies raras e possivelmente a pecuária extensiva aí apareceriam com destaque. Não cabe dúvidas, porém, que se trata de atividades que deixam lucros em mãos privadas, na medida em que os estragos infligidos à natureza e às gerações futuras sejam ignorados. A questão é de tal gravidade que a noção de "falha de mercado" (no caso, omissão das perdas impostas a outros) torna-se aqui um eufemismo. A bem dizer, é todo um paradigma do pensamento ocidental que está, no caso, em questão: em situações como a encontrada na Amazônia, objetivos e estratégias devem prevalecer sobre as oportunidades imediatamente reveladas.


Antonio Barros de Castro, 58, professor-titular da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e ex-presidente do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), escreve às quartas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.


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