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OPINIÃO ECONÔMICA
O dólar e a interdependência global
GILBERTO DUPAS
Infelizmente os déficits gêmeos, interno e externo, norte-americanos, cada um quase do tamanho do PIB brasileiro, são um
problema para o mundo todo, e
não apenas para os EUA. O dólar
moeda de reserva ou referência é
um atributo da condição hegemônica desse país no poder mundial. Gerando 32% do PIB do planeta, crescendo a 4% ao ano
-enquanto a União Européia
consegue apenas metade- e liderando tanto a dinâmica das grandes cadeias globais de produção
como o fluxo de comércio internacional, os EUA até agora tinham conseguido sem dificuldades a mágica de ter abundante financiamento para cobrir seu
rombo pela simples razão de que
todos os investidores internacionais e bancos centrais queriam ter
o dólar como moeda de reserva,
ainda que os títulos do Tesouro
norte-americano rendessem pouco mais de 1% ao ano. Não me parece que essa situação vá mudar
radicalmente, gerando uma corrida contra o dólar e uma substituição da condição privilegiada dessa moeda nos ativos financeiros
internacionais. E a razão é muito
simples: não há, no curto e médio
prazos, outra moeda que possa
exercer essa função.
De fato, a condição dos EUA é
absolutamente diferenciada no
cenário global, para o bem ou para o mal, e a natureza dos seus déficits demonstra isso claramente.
O interno evidencia um consumidor privado e público pujante e
gastador, que não poupa, e
-com isso- mantém sua boca
ávida pelo que se produz no mundo todo. Lembremos que, no pós-guerra -quando os EUA apenas
ensaiavam sua entrada em cena
como a grande potência mundial-, o Japão e seu entorno dos
tigres asiáticos pôde crescer porque a classe média americana se
agigantava sedenta de novos produtos. O novo americano médio,
estimulado por uma propaganda
agressiva e achando que
Hiroshima e Nagasaki eram sinais
de que o mundo poderia acabar a
qualquer momento, mergulhou
no consumismo dos anos dourados e dele não saiu mais. De outro
lado, os gastos do setor público
daquele país contêm um alto volume de despesas militares -de
novo do tamanho de todo o PIB
brasileiro-, já que os EUA querem impor sozinhos uma segurança internacional concebida em
seus termos: essas despesas são
quase iguais ao seu déficit interno
e não devem baixar, para a felicidade geral dos seus fornecedores
mundiais. Nessas condições,
quando o dólar enfraquece em relação ao euro, a Europa sangra
porque suas exportações perdem
automaticamente competitividade -e o crescimento da União
Européia depende bastante de
quanto ela pode vender para os
próprios EUA. Por outro lado, se
os juros norte-americanos sobem
visando restringir um pouco o
consumo interno e atrair mais capitais externos -como está acontecendo agora-, a Europa tem de
fazer o mesmo, encarecendo sua
produção e reduzindo seu consumo e investimento. O mesmo dilema ocorre em relação à China.
Seu notável crescimento tem
ocorrido, em parte, porque se
transformou em imensa plataforma fabril das grandes corporações norte-americanas, que lá
produzem a preços baixos -e de
lá exportam- componentes e
produtos finais consumidos nos
EUA. Uma desvalorização intensa do yuan, que alguns especialistas defendem para ajudar a combater o déficit, causaria um estrago não só na China mas também
nos EUA e -ainda que em menor medida- no resto do mundo. O preço de vários produtos
globais cresceria, pressionando a
inflação, restringindo o consumo
e a expansão geral da economia.
Assim, com os EUA funcionando como locomotiva do crescimento e da inovação mundiais
num quadro de inédita e intensa
interdependência global, sem que
nenhum outro país ou bloco ainda faça sombra à sua hegemonia
incontestável -nem mesmo a
UE, que ainda por muito tempo
estará mergulhada em seus dilemas estratégicos e pendengas burocráticas-, quem apostará pesadamente contra o dólar? É claro
que ajustes e realinhamentos continuarão a ocorrer. Mas que investidor importante imaginará
lastrear sua carteira significativamente em euros se a Europa apresenta baixo crescimento e forte
dependência da dinâmica norte-americana? Quanto ao iene, nem
se fala. A recuperação japonesa,
após mais de uma década de crise,
continua uma grande incógnita.
Das outras moedas, mesmo a libra inglesa não tem qualquer peso
para deslocar o dólar. É por essas
razões que os principais gestores
das fortunas globais -os grandes
bancos internacionais- não ousam recomendar a seus clientes
nada além de ligeiras diversificações: uma pequena posição em libras esterlinas ou papéis neozelandeses aqui, um pedacinho em
títulos australianos ali, um pouco
de ouro acolá -e param por aí. O
fato é que a economia globalizada
transformou o grande imbróglio
dos déficits gêmeos norte-americanos num problema de todos
nós. Os pobres acabarão pagando
mais do que os ricos -o que,
aliás, não é nenhuma novidade-
por um rearranjo global no crescimento e na paridade entre as
moedas, mas tudo indica que esse
processo será lento, ainda que
inexorável. Os EUA deverão continuar hegemônicos por um bom
tempo e, em decorrência disso, o
dólar persistirá como referência
internacional, ainda que com
ajustes. Que fazer?
Gilberto Dupas, 61, coordenador-geral
do Grupo de Conjuntura Internacional
da USP e presidente do Instituto de Estudos Econômicos Internacionais, é autor
de vários livros, entre os quais "Renda,
Consumo e Crescimento" (Publifolha).
Hoje, excepcionalmente, não é publicada a coluna de Paulo Nogueira Batista Jr.
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