São Paulo, quinta-feira, 30 de dezembro de 2004

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OPINIÃO ECONÔMICA

O dólar e a interdependência global

GILBERTO DUPAS Infelizmente os déficits gêmeos, interno e externo, norte-americanos, cada um quase do tamanho do PIB brasileiro, são um problema para o mundo todo, e não apenas para os EUA. O dólar moeda de reserva ou referência é um atributo da condição hegemônica desse país no poder mundial. Gerando 32% do PIB do planeta, crescendo a 4% ao ano -enquanto a União Européia consegue apenas metade- e liderando tanto a dinâmica das grandes cadeias globais de produção como o fluxo de comércio internacional, os EUA até agora tinham conseguido sem dificuldades a mágica de ter abundante financiamento para cobrir seu rombo pela simples razão de que todos os investidores internacionais e bancos centrais queriam ter o dólar como moeda de reserva, ainda que os títulos do Tesouro norte-americano rendessem pouco mais de 1% ao ano. Não me parece que essa situação vá mudar radicalmente, gerando uma corrida contra o dólar e uma substituição da condição privilegiada dessa moeda nos ativos financeiros internacionais. E a razão é muito simples: não há, no curto e médio prazos, outra moeda que possa exercer essa função.
De fato, a condição dos EUA é absolutamente diferenciada no cenário global, para o bem ou para o mal, e a natureza dos seus déficits demonstra isso claramente. O interno evidencia um consumidor privado e público pujante e gastador, que não poupa, e -com isso- mantém sua boca ávida pelo que se produz no mundo todo. Lembremos que, no pós-guerra -quando os EUA apenas ensaiavam sua entrada em cena como a grande potência mundial-, o Japão e seu entorno dos tigres asiáticos pôde crescer porque a classe média americana se agigantava sedenta de novos produtos. O novo americano médio, estimulado por uma propaganda agressiva e achando que Hiroshima e Nagasaki eram sinais de que o mundo poderia acabar a qualquer momento, mergulhou no consumismo dos anos dourados e dele não saiu mais. De outro lado, os gastos do setor público daquele país contêm um alto volume de despesas militares -de novo do tamanho de todo o PIB brasileiro-, já que os EUA querem impor sozinhos uma segurança internacional concebida em seus termos: essas despesas são quase iguais ao seu déficit interno e não devem baixar, para a felicidade geral dos seus fornecedores mundiais. Nessas condições, quando o dólar enfraquece em relação ao euro, a Europa sangra porque suas exportações perdem automaticamente competitividade -e o crescimento da União Européia depende bastante de quanto ela pode vender para os próprios EUA. Por outro lado, se os juros norte-americanos sobem visando restringir um pouco o consumo interno e atrair mais capitais externos -como está acontecendo agora-, a Europa tem de fazer o mesmo, encarecendo sua produção e reduzindo seu consumo e investimento. O mesmo dilema ocorre em relação à China. Seu notável crescimento tem ocorrido, em parte, porque se transformou em imensa plataforma fabril das grandes corporações norte-americanas, que lá produzem a preços baixos -e de lá exportam- componentes e produtos finais consumidos nos EUA. Uma desvalorização intensa do yuan, que alguns especialistas defendem para ajudar a combater o déficit, causaria um estrago não só na China mas também nos EUA e -ainda que em menor medida- no resto do mundo. O preço de vários produtos globais cresceria, pressionando a inflação, restringindo o consumo e a expansão geral da economia.
Assim, com os EUA funcionando como locomotiva do crescimento e da inovação mundiais num quadro de inédita e intensa interdependência global, sem que nenhum outro país ou bloco ainda faça sombra à sua hegemonia incontestável -nem mesmo a UE, que ainda por muito tempo estará mergulhada em seus dilemas estratégicos e pendengas burocráticas-, quem apostará pesadamente contra o dólar? É claro que ajustes e realinhamentos continuarão a ocorrer. Mas que investidor importante imaginará lastrear sua carteira significativamente em euros se a Europa apresenta baixo crescimento e forte dependência da dinâmica norte-americana? Quanto ao iene, nem se fala. A recuperação japonesa, após mais de uma década de crise, continua uma grande incógnita. Das outras moedas, mesmo a libra inglesa não tem qualquer peso para deslocar o dólar. É por essas razões que os principais gestores das fortunas globais -os grandes bancos internacionais- não ousam recomendar a seus clientes nada além de ligeiras diversificações: uma pequena posição em libras esterlinas ou papéis neozelandeses aqui, um pedacinho em títulos australianos ali, um pouco de ouro acolá -e param por aí. O fato é que a economia globalizada transformou o grande imbróglio dos déficits gêmeos norte-americanos num problema de todos nós. Os pobres acabarão pagando mais do que os ricos -o que, aliás, não é nenhuma novidade- por um rearranjo global no crescimento e na paridade entre as moedas, mas tudo indica que esse processo será lento, ainda que inexorável. Os EUA deverão continuar hegemônicos por um bom tempo e, em decorrência disso, o dólar persistirá como referência internacional, ainda que com ajustes. Que fazer?


Gilberto Dupas, 61, coordenador-geral do Grupo de Conjuntura Internacional da USP e presidente do Instituto de Estudos Econômicos Internacionais, é autor de vários livros, entre os quais "Renda, Consumo e Crescimento" (Publifolha).

Hoje, excepcionalmente, não é publicada a coluna de Paulo Nogueira Batista Jr.


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