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OPINIÃO ECONÔMICA
Genocídio na aldeia global
RUBENS RICUPERO
"Enquanto não se puser fim
ao genocídio, não pode existir
verdadeira globalização."
Quem disse essas palavras foi
uma japonesa miúda e de aparência frágil, Sadako Ogata, Alta Comissária da ONU para os
Refugiados.
Ela é das raras pessoas que
preservam no mundo de hoje a
capacidade de indignação moral. Depois de tentar salvar, em
meio à indiferença generalizada, os refugiados dos campos do
Zaire, desembarcou no coração
do poder, na capital dos Estados Unidos, o centro do "Consenso de Washington", para
desmascarar a grande mistificação do nosso tempo.
Em discurso no Museu do Holocausto, lembrou que meio século após as abominações nazistas, ainda não se conseguiu
liquidar, "a mais violenta e pervertida forma de violação dos
direitos humanos".
"Por quê?", perguntou, "Se teve de esperar até agosto de 1995
para que a população de Sarajevo e de outras cidades sitiadas
da Bósnia recebesse o socorro
da Otan e a paz fosse finalmente imposta? É moral e praticamente admissível permanecer
neutro diante de atrocidades
sistemáticas? Por que país algum se dispôs a intervir em
Ruanda no auge do genocídio
em 1994? Por que a Força Multinacional autorizada a resgatar centenas de milhares de refugiados no leste do Zaire foi
cancelada em dezembro do ano
passado, fazendo com que milhares de pessoas perdessem a
vida na região?"
Sua resposta é clara e forte
como suas perguntas. "É porque
as grandes potências não identificaram nisso qualquer interesse estratégico ou porque os
seus interesses não convergiram."
E prossegue, destroçando outro mito dos dias que correm: o
de que a queda do Muro de
Berlim tivesse curado a paralisia dos poderosos. "Nesse sentido, a situação não difere fundamentalmente dos anos da Guerra Fria, quando interesses políticos derivados do confronto
ideológico foram uma das causas para não impedir os campos
de matança do Camboja."
Um discurso como esse desmonta o mecanismo de hipocrisia pelo qual se entoam hinos
de louvor à glória da economia
globalizada, enquanto se fecham os olhos seletivamente
aos crimes abjetos a que essa
economia não é de todo alheia.
Há, de fato, uma solidariedade para o bem, mas igualmente
para o mal, a comunhão dos
santos, mas também o conluio
dos perversos. O bem geral da
humanidade pode talvez aconselhar a integração dos mercados e a abolição das barreiras
ao investimento. Nesse caso, porém, essa mesma razão de solidariedade impõe que se abram
as portas ao imigrante e ao refugiado, que se proteja a vítima
do genocídio.
A verdadeira globalização
não é apenas a unificação dos
mercados ou do espaço econômico. Essa é uma visão reducionista que rebaixa o fenômeno a
um dos seus componentes. A
globalização é, na verdade, ou
deve ser a unificação em dimensão planetária do espaço
para a ação e a promoção do
homem em todos os campos de
bem-estar material e espiritual.
Sua força principal vem da
política e da cultura, não da
economia. Foi o fim do confronto ideológico que criou as condições para facilitar a integração econômica e não o inverso.
Na base disso tudo vamos encontrar as revoluções na ciência
e na tecnologia, em outras palavras, na cultura. Como havia
ocorrido no Renascimento, permitindo a era das descobertas
marítimas, ou na Revolução Industrial.
É por esse motivo que a globalização digna desse nome é sinônimo de respeito à diversidade cultural, é a observância
universal dos direitos humanos,
a co-responsabilidade de todos
para dispensar proteção contra
o mal.
Iludem-se os que julgam possível a sobrevivência de uma
globalização confinada à esfera
econômica. Esquecem que a
globalização da época vitoriana, da belle époque, foi aniquilada pela guerra de 1914. E que
deu lugar ao totalitarismo político e econômico dos anos 30 e à
Segunda Guerra Mundial.
Tampouco é aceitável dar de
ombros e culpar pelas selvagerias a natureza feroz de povos
tribais. Sabemos hoje muito
bem que na raiz desses conflitos
ou do seu agravamento é fácil
detectar as impressões digitais
do imperialismo e da colonização. Boa parte do suposto antagonismo atávico de Tutsis e Hutus foi inventado pelos colonizadores como arma de dominação. E por falar em armas,
quem armou os fundamentalistas no Afeganistão, quem arrastou o Camboja para a guerra? E
não teríamos espaço se fôssemos aqui fazer o processo da
responsabilidade das potências
coloniais na criação de dezenas
de países inviáveis onde o Estado se encontra em plena regressão.
Diante desses horrores, a solução não virá da indiferença, do
"sacro egoísmo" dos poderosos
ou da ação unilateral nos casos
eventuais em que o interesse
dos grandes estiver envolvido.
Ela terá de ser buscada no reforço das Nações Unidas, na
criação de uma força internacional de intervenção rápida
que possa ser empregada em situações-limites e com a participação do maior número possível de países.
Só assim poderemos caminhar
em direção à verdadeira globalização com rosto humano, cuja
inspiração é, não Margareth
Thatcher ou Bill Gates, mas Sadako Ogata e madre Teresa de
Calcutá.
Rubens Ricupero, 59, secretário-geral da
Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre
Comércio e Desenvolvimento) e ex-ministro
da Fazenda (governo Itamar Franco), escreve
aos sábados nesta coluna.
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