São Paulo, sábado, 31 de maio de 1997.



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OPINIÃO ECONÔMICA
Genocídio na aldeia global

RUBENS RICUPERO
"Enquanto não se puser fim ao genocídio, não pode existir verdadeira globalização." Quem disse essas palavras foi uma japonesa miúda e de aparência frágil, Sadako Ogata, Alta Comissária da ONU para os Refugiados.
Ela é das raras pessoas que preservam no mundo de hoje a capacidade de indignação moral. Depois de tentar salvar, em meio à indiferença generalizada, os refugiados dos campos do Zaire, desembarcou no coração do poder, na capital dos Estados Unidos, o centro do "Consenso de Washington", para desmascarar a grande mistificação do nosso tempo.
Em discurso no Museu do Holocausto, lembrou que meio século após as abominações nazistas, ainda não se conseguiu liquidar, "a mais violenta e pervertida forma de violação dos direitos humanos".
"Por quê?", perguntou, "Se teve de esperar até agosto de 1995 para que a população de Sarajevo e de outras cidades sitiadas da Bósnia recebesse o socorro da Otan e a paz fosse finalmente imposta? É moral e praticamente admissível permanecer neutro diante de atrocidades sistemáticas? Por que país algum se dispôs a intervir em Ruanda no auge do genocídio em 1994? Por que a Força Multinacional autorizada a resgatar centenas de milhares de refugiados no leste do Zaire foi cancelada em dezembro do ano passado, fazendo com que milhares de pessoas perdessem a vida na região?"
Sua resposta é clara e forte como suas perguntas. "É porque as grandes potências não identificaram nisso qualquer interesse estratégico ou porque os seus interesses não convergiram."
E prossegue, destroçando outro mito dos dias que correm: o de que a queda do Muro de Berlim tivesse curado a paralisia dos poderosos. "Nesse sentido, a situação não difere fundamentalmente dos anos da Guerra Fria, quando interesses políticos derivados do confronto ideológico foram uma das causas para não impedir os campos de matança do Camboja."
Um discurso como esse desmonta o mecanismo de hipocrisia pelo qual se entoam hinos de louvor à glória da economia globalizada, enquanto se fecham os olhos seletivamente aos crimes abjetos a que essa economia não é de todo alheia.
Há, de fato, uma solidariedade para o bem, mas igualmente para o mal, a comunhão dos santos, mas também o conluio dos perversos. O bem geral da humanidade pode talvez aconselhar a integração dos mercados e a abolição das barreiras ao investimento. Nesse caso, porém, essa mesma razão de solidariedade impõe que se abram as portas ao imigrante e ao refugiado, que se proteja a vítima do genocídio.
A verdadeira globalização não é apenas a unificação dos mercados ou do espaço econômico. Essa é uma visão reducionista que rebaixa o fenômeno a um dos seus componentes. A globalização é, na verdade, ou deve ser a unificação em dimensão planetária do espaço para a ação e a promoção do homem em todos os campos de bem-estar material e espiritual.
Sua força principal vem da política e da cultura, não da economia. Foi o fim do confronto ideológico que criou as condições para facilitar a integração econômica e não o inverso. Na base disso tudo vamos encontrar as revoluções na ciência e na tecnologia, em outras palavras, na cultura. Como havia ocorrido no Renascimento, permitindo a era das descobertas marítimas, ou na Revolução Industrial.
É por esse motivo que a globalização digna desse nome é sinônimo de respeito à diversidade cultural, é a observância universal dos direitos humanos, a co-responsabilidade de todos para dispensar proteção contra o mal.
Iludem-se os que julgam possível a sobrevivência de uma globalização confinada à esfera econômica. Esquecem que a globalização da época vitoriana, da belle époque, foi aniquilada pela guerra de 1914. E que deu lugar ao totalitarismo político e econômico dos anos 30 e à Segunda Guerra Mundial.
Tampouco é aceitável dar de ombros e culpar pelas selvagerias a natureza feroz de povos tribais. Sabemos hoje muito bem que na raiz desses conflitos ou do seu agravamento é fácil detectar as impressões digitais do imperialismo e da colonização. Boa parte do suposto antagonismo atávico de Tutsis e Hutus foi inventado pelos colonizadores como arma de dominação. E por falar em armas, quem armou os fundamentalistas no Afeganistão, quem arrastou o Camboja para a guerra? E não teríamos espaço se fôssemos aqui fazer o processo da responsabilidade das potências coloniais na criação de dezenas de países inviáveis onde o Estado se encontra em plena regressão.
Diante desses horrores, a solução não virá da indiferença, do "sacro egoísmo" dos poderosos ou da ação unilateral nos casos eventuais em que o interesse dos grandes estiver envolvido. Ela terá de ser buscada no reforço das Nações Unidas, na criação de uma força internacional de intervenção rápida que possa ser empregada em situações-limites e com a participação do maior número possível de países.
Só assim poderemos caminhar em direção à verdadeira globalização com rosto humano, cuja inspiração é, não Margareth Thatcher ou Bill Gates, mas Sadako Ogata e madre Teresa de Calcutá.


Rubens Ricupero, 59, secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ex-ministro da Fazenda (governo Itamar Franco), escreve aos sábados nesta coluna.



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