São Paulo, sábado, 31 de agosto de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ANÁLISE

A "trifeta" de Bush

Paul Buck - 8.set.00/France Presse
George Bush exibe nota de US$ 1 durante a campanha em 2000


PAUL KRUGMAN

A história , até agora, é a seguinte:
Verão de 2000. O candidato George W. Bush garante aos eleitores que o corte nos impostos que ele propõe é viável. Para ilustrar seu argumento, utiliza quatro notas de US$ 1. Uma delas, afirma, representa o corte nos impostos; outra representa os novos programas, tais como a cobertura de medicamentos receitados por médicos; e as duas outras simbolizam verbas postas de lado para saldar dívidas e fortalecer a seguridade social. Ele faz uma promessa incondicional: não usar o superávit da seguridade.
Primavera de 2001. A administração Bush faz com que o Congresso aprove o corte nos impostos. As autoridades rejeitam os receios de que as projeções de um superávit enorme possam ser excessivamente otimistas e garantem aos parlamentares que, na realidade, as projeções erram por excesso de pessimismo. Bush afirma, também, que seu orçamento inclui uma reserva de US$ 1 trilhão, suficiente para fazer frente a qualquer contingência.
Verão de 2001. Semanas apenas depois de aprovado o corte nos impostos, autoridades revelam que o governo vem recebendo muito menos impostos do que previra. As projeções orçamentárias são revistas para baixo, mas a administração continua a alegar que terá superávit global maior do que o superávit da seguridade, ou seja, superior a US$ 150 bilhões por ano. A administração também afirma que o corte nos impostos, concebido num momento de franco crescimento da economia, constitui exatamente o remédio certo para uma economia que enfrenta problemas.
Outubro de 2001. ""Sorte minha, acertei a "trifeta'" (sistema de apostas em que o apostador escolhe os três primeiros colocados na sequência certa). Foi o que disse Bush, afirmando que a recessão, a emergência nacional e a guerra o livraram da obrigação de cumprir suas promessas relativas ao orçamento.
Embora alguns setores considerem a brincadeira como sendo de mau gosto, ela vira parte do discurso político padrão do presidente. Ele afirma haver feito essa exceção a suas promessas orçamentárias durante a campanha de 2000, mas não existe nenhum registro de que o tenha feito.
Novembro de 2001. O diretor do orçamento, Mitch Daniels, admite que haverá déficit no orçamento global -não apenas no orçamento fora o da seguridade- no ano fiscal de 2002.
Julho de 2002. A Casa Branca admite que o déficit do ano fiscal de 2002, que termina em setembro, será de US$ 165 bilhões -sem contar com a seguridade social, um déficit de US$ 322 bilhões. Mas, mesmo assim, afirma que o orçamento voltará a ter superávit em 2004.
Agosto de 2002. O Escritório Orçamentário do Congresso, um organismo não-partidário, divulga uma projeção muito mais sombria, com déficit em 2003 duas vezes superior ao previsto pelo governo e déficits persistindo até 2006. Ademais, o escritório é obrigado, por lei, a partir de premissas não-realistas, fato que o leva a subestimar déficits futuros. Uma nova análise realizada pela Goldman Sachs, que não está sujeita às mesmas restrições, prevê déficits superiores a US$ 100 bilhões para o restante da década. Essa inversão da fortuna fiscal da ordem de US$ 7 trilhões vem passando quase desapercebida do público, tendo sido expulsa das primeiras páginas dos jornais pelas especulações sobre a guerra. Mas suas consequências serão enormes.
Onde foi parar o superávit? A "trifeta" não é o mais importante: as recessões exercem impacto apenas pequeno sobre as projeções de longo prazo, e o Centro de Prioridades Orçamentárias e Políticas calcula que os aumentos nos gastos militares e de segurança nacional respondem por apenas 16% da deterioração prevista na projeção do Escritório Orçamentário do Congresso para os próximos dez anos. Na verdade, fica claro que estaríamos enfrentando grandes déficits fora da seguridade social, e, provavelmente, déficits significativos no orçamento como um todo, mesmo que não tivessem acontecido a recessão e os atentados de 11 de setembro.
Os dois culpados principais são o corte nos impostos e as ""mudanças técnicas" nas estimativas: possivelmente devido ao final do mercado em alta, um nível dado de PIB está gerando muito menos receita do que gerava no final dos anos 90. Ou, em outros termos, nossa breve era de grandes superávits parece ter sido apenas um acaso feliz.
Apesar das afirmações tranquilizadoras segundo as quais o corte nos impostos promoveria a retomada da economia, esta parece estar tropeçando. Os primeiros indicativos são de que o governo vai propor uma nova rodada de cortes nos impostos, todos voltados aos investidores no mercado acionário. É importante observar que medidas como o aumento das deduções para perdas de capital não beneficiam em nada a quem investe por meio de planos de aposentadoria. Logo, esses cortes nos impostos vão beneficiar principalmente os muito ricos. Uma análise cuidadosa feita por William Gale e Peter Orszag -especialistas do Instituto Brookings que vêm demonstrando, corretamente e de maneira consistente, que as projeções orçamentárias da administração pecavam pelo excesso de otimismo- mostra que essas medidas serão ineficazes como estímulo e que vão agravar ainda mais as perspectivas do orçamento.
É claro que a administração vai desprezar esses argumentos, assegurando-nos de que suas propostas são exatamente o que o país precisa. Alguém pode pensar em uma razão para não confiar nela?

Paul Krugman, economista, é professor na Universidade Princeton e colunista do "The New York Times".

Tradução de Clara Allain


Texto Anterior: Opinião Econômica - Gesner Oliveira: Otimistas na balança
Próximo Texto: Luís Nassif: A epopéia do Ipen
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.