São Paulo, quinta-feira, 01 de julho de 2004
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outras idéias

Vou contar a história de brincadeiras que ocorreram durante a infância e a adolescência de uma criança e que coincidem com a sua realidade de hoje

Urubu informatizado

thereza soares pagani

Hoje, muitas famílias estão à procura de creches ou escolas maternais que possuam sala de informática ou de televisão onde os filhos possam ficar enquanto esperam os pais retardatários por motivo de trânsito ou por esquecimento -ou, por que não dizer, por hábito ou displicência?
As crianças cansadas aguardam vendo TV numa boa, como eles dizem. Será que é isso mesmo? Quem fica com elas durante a espera? Elas dormem ou se angustiam por se sentirem sós?
Na primeira infância, quando a criança idealiza ou fantasia, principalmente junto à natureza, essa experiência é guardada para o resto da vida. E a procura em realizar esse sonho a acompanha no futuro, quando adulta. Isso me faz lembrar de uma história que, com muita alegria, quero relatar, corroborando a missão educativa da nossa escola de vida e das escolas formais, no que se refere aos espaços oferecidos para atividades lúdicas e manuais ligadas ao brinquedo.
Vou contar a história de estripulias e de brincadeiras que ocorreram durante a infância e a adolescência de uma criança muito franzina e que coincidem com a sua realidade de hoje.
Era uma vez um garoto com muita energia para brincar em casa e fora dela. Brincar naquela época era tão importante quanto comer e dormir. Nessa fase da vida, comer mais coçar mais brincar era só começar! Era uma simples questão de gastar a energia que sobrava para uma melhor administração das novas pesquisas. A casa, o céu e a terra eram o laboratório que tinha para investigar o limite das suas imaginações criativas e produtivas. O cenário daquela natureza extraordinária era constituído de água, terra, aves, insetos, brinquedos que fabricava na carpintaria de casa e cozinhados que fazia no quintal, em um mundo virtual propriamente dito da idade. Foi brincando que aprendeu uma verdade das mais diretas e simples, por meio de uma história patrocinada por um pássaro chamado urubu. Primeiro, o garoto pegava um fio de barbante com papel colorido cortado em tiras e as colocava numa das extremidades, tal qual uma rabiola de pipa. Segundo, pegava uma pelanca de carne de boi cortada em pedaços pequenos, tal como uma carniça, amarrados na outra extremidade. Tudo pronto e dava início à sua aventura. De pés descalços, ele começava a subir a escada em forma de caracol que dava no terraço e também no telhado da casa. Aquele era o ponto estratégico de observação dos urubus, que voavam em círculos e sem bater as asas. Ele achava fascinante poder voar sem bater as asas.
Uma brincadeira simples, mas cheia de energia e ávida de conhecimento do espaço entre o céu e a terra, sem obstáculos na linha do horizonte. O coração do garoto batia forte quando jogava o primeiro pedaço de pelanca sobre o telhado. Ninguém podia vê-lo, muito menos os urubus, que voavam mais baixo, circulando mais perto do telhado da casa.
A concentração aumentava a cada instante. E parecia que o coração dele ia sair pela boca. Finalmente, a sua intenção começava a ser concretizada, ou seja, um dos urubus, provavelmente aquele que estava com mais fome, pegou exatamente uma das carniças amarradas no barbante que ele segurava escondido debaixo do telhado. Agarrando firme o barbante, sentia que a pelanca havia sido engolida pelo urubu, que, sem rumo, procurava se safar daquela armadilha. Dando corda ainda mais à imaginação, amarrava bombinhas de traque no barbante e as acendia, perto das tiras de papel colorido. E, assim, após a primeira pipocada, soltava o barbante enfeitado e sonoro para que o urubu festivo voasse livremente pelo céu da cidade, transportando a arte e a alegria de uma criança que gostava de brincar e explorar a natureza.
Desde então, pela extraordinária beleza daquela simples e inovadora brincadeira, uma idéia dominante foi perseguida, transformando aquela estripulia de infância na esperança de felicidade daquele garoto. Ele pôde sonhar em voar e, quando adulto, foi ser aviador. E isso sem nunca ter necessidade de pilotar um computador nem navegar pela internet!
Não sou contra o computador. Mas a brincadeira virtual da máquina é conduzida pelo seu programador. Ao contrário da brincadeira na realidade, em que a criança usa o que é dela, ela vive o real de dentro para fora. Eu mesma, desde pequenininha, sempre quis ser professora. E vivenciava esse ensinar os outros com bruxinhas de pano, com bonecos. Hoje eu me realizo vivenciando aquele sonho.
Os tempos mudaram. Que bom! Mas que pena das nossas crianças robotizadas!...


THEREZA SOARES PAGANI ("Therezita") é educadora e diretora da Tearte, escola de educação infantil; e-mail: tepagani@uol.com.br


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