São Paulo, terça-feira, 02 de agosto de 2011
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FILHOS

PEDRO E PAULO

O primogênito paga o preço de nossa inexperiência, insegurança e burrada

Leia capítulo do livro 'Coração de Pai', de José Ruy Gandra, com histórias sobre a arte de criar filhos

Hoje tenho dois filhos de idades, feições e mães diferentes. E os amo por igual. Pedro, o caçula, prestes a trocar suas fraldas por cuecas, é de uma timidez cativante. Paulo, por sua vez, o mais velho, é o adolescente padrão: hormônios, inconstância, doçura, ansiedade... Cada um é um, mas, repito, eu os amo por igual. Se tivesse, porém, de dizer qual deles mais me enternece, escolheria o primogênito. A razão? Bem, antes de mais nada, por ter sido ele o primeiro. Paulo levantou o véu. Fez de mim um pai.
O primogênito desperta em nós um impulso darwinista: o de zelar para que essa criatura, um candidato a cidadão gerado com a fricção de nossos corpos, não morra -de medo, fome, frio ou sarampo. Esse papo pode soar estranho, mas é como funcionam as pulsões básicas graças às quais nossa espécie sobreviveu enquanto tantas outras desapareciam.
O primogênito é também nosso maior laboratório de acertos e burradas. Paulo não fugiu à sina. Foi meu órgão de choque; a cobaia involuntária de meus avanços e retrocessos na vida. Absorveu meus deslizes, minhas fantasias e mágoas. Foi um bravo!
Outro detalhe, aos meus olhos paternos, o torna um herói. Como a maioria dos garotos de sua idade, Paulo integra a primeira geração pós-divórcio. Com pai e mãe apartados, teve de se habituar a ver a vida por um prisma bifocal. No início, brigou feito um leão para manter seu mundinho intacto -e seus pais, juntos. Depois, vencido, resignou-se. Pergunto-me se eu, criança, teria sido tão forte.
Por vários anos após a separação, mantive com ele uma relação delicada: cobranças, projeções, carências de parte a parte... Na festa de meu segundo casamento, vi claramente a satisfação e o desalento se misturarem em seus olhos azuis. A primeira devia-se ao fato de me ver feliz. O segundo, à constatação de que, naquele instante, a cisão de seu mundo se sacramentara de vez.
Aquele seu olhar marejado me perseguiu silenciosamente durante a gestação de Pedro. Como reagiria Paulo?
Pois ele foi o primeiro a chegar à maternidade na manhã em que seu irmão nasceria. Mais tarde, longe de exasperar-se por ter de dividir o quarto na casa paterna com um bebê, presenteou o maninho com duas Ferraris em miniatura que eu mesmo lhe dera anos antes. Que quarto, aquele... Kurt Cobain num canto. Buzz Lightyear no outro.
Vi, enfim, que Paulo crescera -e aquilo pedia uma comemoração. No Carnaval viajamos, só nós dois, para a Itália. No Al Ceppo, um delicioso restaurante romano, eu lhe propus duas coisas: que tomássemos juntos um copo de vinho (talvez seu primeiro) e que ele fosse padrinho do irmão. Quando crescer, Pedro provavelmente abençoará essa escolha -se, como eu, perceber que, em muitos aspectos, foi graças ao brother que lhe coube a fatia mais doce desse bolo chamado paternidade.

JOSÉ RUY GANDRA, jornalista e historiador, é pai de Paulo e Pedro, e avô de Rodrigo.



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