São Paulo, quinta-feira, 02 de setembro de 2004
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outras idéias

anna veronica mautner

Os costumes mudam, o prazer não

Muito do que, no passado, era proibido tornou-se, em poucos anos, objeto público de desejo.
Muito do que se fazia com vergonha é hoje motivo de orgulho -ter prazer sexual, por exemplo. Depois que os poetas cantam, depois que a ciência descobre, muito do que era escondido passa a poder ser exibido e o que um dia foi um ato glorioso pode virar um ato vergonhoso e vice-versa.
Exemplifiquemos: o gozo, que tinha de ser silencioso, hoje é motivo de orgulho. A virgindade, que já foi motivo de orgulho, hoje não é mais, não. Com o desenvolvimento das ciências do comportamento e das neurociências, certas formas de timidez ganharam o nome de complexo de inferioridade (que hoje não existe mais) e agora são tratadas tranqüilamente como fobias.
Mania de colecionar e mania de limpeza vão para a categoria de compulsão e, conforme a gravidade, de obsessão. Preguiça não existe mais. Hoje se chama de hipoatividade, distimia ou de traço depressivo. Muitos pecados viraram doença, não só a preguiça.
Onde está a luxúria, pecado tão grave, desprezível? As ciências da mente estão em plena ebulição e poder-se-iam enumerar muitos exemplos de transformações, mas vou me ater ao universo dos tabus sexuais que a descoberta da pílula anticoncepcional, que, com o DIU e o diafragma, resultou, em muito pouco tempo, na revolução sexual, que provocou uma grande revoada de comportamentos que eram ou pecados ou vergonha transformou em motivo de orgulho e objeto de desejo.
Já vai longe o tempo em que certas formas de carícia pareciam existir apenas para preservar a virgindade ou para evitar filhos. E também para preservar uma certa aura de inocência que os homens gostavam de imaginar como atributo de suas futuras esposas.
A famosa camisinha ou camisa-de-vênus já tem muito mais que um século de vida. Sua utilidade era apenas evitar filhos. E eis que a Aids e outras doenças sexualmente transmissíveis lhe trouxeram outras funções. Hoje, ei-la exposta em supermercados e farmácias, não mais apenas para evitar filhos, mas para evitar contaminação. Apesar da pílula, a camisinha vem voltando às gavetas dos criados-mudos quando não vai para as carteiras femininas, pois cabe também às mulheres o defender-se.
O coito interrompido, ao qual Freud atribuiu possível gênese de traços neuróticos, também não caiu em desuso. O coito oral, o coito anal, a ejaculação externa, sem penetração, práticas vulgarmente chamadas de relações de "demi-vièrges", eram o que se podia sonhar para antes do casamento. Todo mundo sabia que existiam esses atos e que eles eram praticados, mas, entre pessoas de bem, fazia-se um silêncio em torno do assunto. Assim se caminhou do reprimido para o prazer, da vergonha para o orgulho.
Quando era moça, não cabia à mulher ter prazer ou desejo. A ingenuidade e a inocência eram traços desejados.
Surpreendem-me sempre as voltas que a vida dá e o que uma boa causa (razão) é capaz de provocar. A uma conclusão nós podemos chegar: se o que é vergonha causa prazer, este não desaparece. É mais fácil mudar sua avaliação -como aconteceu com o sexo. Os recursos que se usavam, pois, para manter a virgindade e evitar a gravidez hoje são meios de evitar a monotonia do papai-e-mamãe.
Já não se diz que a mulher não deve mostrar prazer. A questão atual é alongar a duração do prazer, e o gozo, de silencioso e envergonhado que era, tornou-se um dever -com requintes de ritmo, pois é preciso que ambos gozem juntos. Ter bloqueios de sentir prazer é encarado hoje como problema da saúde. O problema saiu do escaninho da moral para entrar na categoria de saúde. Já vai longe o tempo em que os homens temiam as mulheres "assanhadas", as que gostavam de sexo, as que gozavam. O que eles temiam era a infidelidade, os "chifres"-e a assanhada, afinal, tinha maior probabilidade de ser infiel.
Já ouvi relatos da parte de mulheres com muita dificuldade de gozar, segundo as quais o problema teria aparecido depois de algum namorado ter emitido comentário desairoso sobre o prazer que ela não tinha sido capaz de esconder.
Lá no meu bairro, a Lapa (São Paulo), havia uma rua bem comprida, na qual não morava ninguém. De um lado, eram os muros da estrada de ferro Santos-Jundiaí e, de outro, uma metalúrgica -a Martins Ferreira. Os mais velhos diziam que ali era uma fábrica de anjos porque os jovens iam lá para namorar. Ficavam encostados no muro em longas bolinações. Eram muitos os casais que iam para lá no escuro das noites sem correr perigo. Quem estava lá não era para ser visto, portanto ninguém falava de ninguém. O paredão era então o motel possível. Dos múltiplos paredões que deviam existir pelas cidades até os motéis ou mesmo até a complacência das famílias modernas (para as quais que não é preciso casar para ficar junto), muita coisa mudou, mas os comportamentos que dão prazer só mudaram de nome. Não desapareceram.


ANNA VERONICA MAUTNER, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (editora Ágora); e-mail: amautner@uol.com.br


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