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outras idéias
anna veronica mautner
Os costumes mudam, o prazer não
Muito do que, no passado, era proibido tornou-se,
em poucos anos, objeto público de desejo.
Muito do que se fazia com vergonha é hoje
motivo de orgulho -ter prazer sexual, por exemplo. Depois que os poetas cantam, depois que a ciência descobre,
muito do que era escondido passa a poder ser exibido e o
que um dia foi um ato glorioso pode virar um ato vergonhoso e vice-versa.
Exemplifiquemos: o gozo, que tinha de ser silencioso,
hoje é motivo de orgulho. A virgindade, que já foi motivo
de orgulho, hoje não é mais, não. Com o desenvolvimento
das ciências do comportamento e das neurociências, certas formas de timidez ganharam o nome de complexo de
inferioridade (que hoje não existe mais) e agora são tratadas tranqüilamente como fobias.
Mania de colecionar e mania de limpeza vão para a categoria de compulsão e, conforme a gravidade, de obsessão.
Preguiça não existe mais. Hoje se chama de hipoatividade,
distimia ou de traço depressivo. Muitos pecados viraram
doença, não só a preguiça.
Onde está a luxúria, pecado tão grave, desprezível? As
ciências da mente estão em plena ebulição e poder-se-iam
enumerar muitos exemplos de transformações, mas vou
me ater ao universo dos tabus sexuais que a descoberta da
pílula anticoncepcional, que, com o
DIU e o diafragma, resultou, em
muito pouco tempo, na revolução
sexual, que provocou uma grande
revoada de comportamentos que
eram ou pecados ou vergonha
transformou em motivo de orgulho
e objeto de desejo.
Já vai longe o tempo em que certas formas de carícia pareciam existir apenas para preservar a virgindade ou para evitar filhos. E também para preservar uma certa aura
de inocência que os homens gostavam de imaginar como atributo de
suas futuras esposas.
A famosa camisinha ou camisa-de-vênus já tem muito
mais que um século de vida. Sua utilidade era apenas evitar filhos. E eis que a Aids e outras doenças sexualmente
transmissíveis lhe trouxeram outras funções. Hoje, ei-la
exposta em supermercados e farmácias, não mais apenas
para evitar filhos, mas para evitar contaminação. Apesar
da pílula, a camisinha vem voltando às gavetas dos criados-mudos quando não vai para as carteiras femininas,
pois cabe também às mulheres o defender-se.
O coito interrompido, ao qual Freud atribuiu possível
gênese de traços neuróticos, também não caiu em desuso.
O coito oral, o coito anal, a ejaculação externa, sem penetração, práticas vulgarmente chamadas de relações de "demi-vièrges", eram o que se podia sonhar para antes do casamento. Todo mundo sabia que existiam esses atos e que
eles eram praticados, mas, entre pessoas de bem, fazia-se
um silêncio em torno do assunto. Assim se caminhou do
reprimido para o prazer, da vergonha para o orgulho.
Quando era moça, não cabia à mulher ter prazer ou desejo. A ingenuidade e a inocência eram traços desejados.
Surpreendem-me sempre as voltas que a vida dá e o que
uma boa causa (razão) é capaz de provocar. A uma conclusão nós podemos chegar: se o que é vergonha causa
prazer, este não desaparece. É mais fácil mudar sua avaliação -como aconteceu com o sexo. Os recursos que se
usavam, pois, para manter a virgindade e evitar a gravidez
hoje são meios de evitar a monotonia do papai-e-mamãe.
Já não se diz que a mulher não deve mostrar prazer. A
questão atual é alongar a duração do prazer, e o gozo, de
silencioso e envergonhado que era, tornou-se um dever
-com requintes de ritmo, pois é preciso que ambos gozem juntos. Ter bloqueios de sentir prazer é encarado hoje
como problema da saúde. O problema saiu do escaninho
da moral para entrar na categoria de saúde. Já vai longe o
tempo em que os homens temiam as mulheres "assanhadas", as que gostavam de sexo, as que gozavam. O que eles
temiam era a infidelidade, os "chifres"-e a assanhada,
afinal, tinha maior probabilidade de ser infiel.
Já ouvi relatos da parte de mulheres com muita dificuldade de gozar, segundo as quais o problema teria aparecido depois de algum namorado ter emitido comentário desairoso sobre o prazer que ela não tinha sido capaz de esconder.
Lá no meu bairro, a Lapa (São Paulo), havia uma rua
bem comprida, na qual não morava ninguém. De um lado, eram os muros da estrada de ferro Santos-Jundiaí e, de
outro, uma metalúrgica -a Martins Ferreira. Os mais velhos diziam que ali era uma fábrica de anjos porque os jovens iam lá para namorar. Ficavam encostados no muro
em longas bolinações. Eram muitos os casais que iam para
lá no escuro das noites sem correr perigo. Quem estava lá
não era para ser visto, portanto ninguém falava de ninguém. O paredão era então o motel possível. Dos múltiplos paredões que deviam existir pelas cidades até os motéis ou mesmo até a complacência das famílias modernas
(para as quais que não é preciso casar para ficar junto),
muita coisa mudou, mas os comportamentos que dão
prazer só mudaram de nome. Não desapareceram.
ANNA VERONICA MAUTNER, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (editora Ágora); e-mail: amautner@uol.com.br
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