|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
saúde
amor nos tempos do lipiodol
Saiba mais sobre a aracnoidite -doença que acometeu
a mulher do filósofo André Gorz, homenageada por ele
no livro "Carta a D.", sucesso de vendas no país
Suzi-Pillet/Divulgação-Ed.Galilée
| O filósofo André Gorz com a mulher, Dorine, em 1947 |
JULLIANE SILVEIRA
DA REPORTAGEM LOCAL
E la faria 82 anos de idade e 58 de casada quando recebeu uma carta de seu
marido. Estava doente havia mais de 30 anos -tinha aracnoidite- e ele, que não
conseguiria viver sem ela, precisava expressar todo o seu amor. Pouco depois de
um ano, em setembro de 2007, decidiram ambos pelo suicídio, pois não
desejavam "sobreviver um à morte do outro", como ele escreveu. Foram
encontrados juntos em sua casa.
A carta para Dorine, redigida pelo filósofo austríaco radicado na França André
Gorz, virou livro. No Brasil, a primeira tiragem, de 5.000 exemplares, se esgotou
em uma semana. "Carta a D." se mantém em listas dos dez livros mais vendidos
no país há um mês.
Gorz relata, além de declarações de amor irrepreensíveis, o sofrimento de sua
mulher, que tinha uma inflamação na aracnóide, uma das membranas que
recobrem o cérebro e a medula espinhal, ocasionada por resíduos de um
contraste para radiografia aplicado nela oito anos antes, quando foi operada de
hérnia de disco.
"A aracnoidite é uma meningite química, uma reação inflamatória da membrana,
que pode gerar uma espécie de fibrose na região inflamada e causar dores",
explica o neurologista Osvaldo Takayanagui, diretor científico da Academia
Brasileira de Neurologia. No caso de Dorine, o lipiodol, substância contrastante
feita de óleo de papoula, havia desencadeado o problema. "Uma parte do líquido
tinha subido até as fossas cranianas e a outra formara um cisto na região
cervical", conta Gorz no livro.
O produto, aplicado em exames radiológicos, circulava pelo liquor -líquido que
passa dentro da medula espinhal, próximo à aracnóide. Se não fosse totalmente
eliminado após o procedimento, poderia irritar a membrana onde se depositasse,
na cabeça ou em qualquer parte da medula. Por ser oleoso, aderia-se mais
facilmente ao organismo.
Há bastante tempo, o lipiodol deixou de ser utilizado como agente contrastante em
exames, sendo substituído por contrastes hidrossolúveis que, depois, foram
excluídos pela ressonância magnética e por outros métodos mais minuciosos para
diagnosticar problemas na coluna, diz Takayanagui. Hoje, é usado para combater
tumores do fígado, e o uso de outros contrastes em
exames desse tipo é incomum.
A aracnoidite, no entanto, ainda acomete algumas pessoas e geralmente é
causada por processos inflamatórios crônicos da tuberculose e da cisticercose e
por fungos.
"Essas doenças podem produzir uma inflamação na membrana e a irritação
crônica leva ao espessamento da região, o que pode comprimir as raízes
nervosas ou da medula espinhal", diz o neurocirurgião Mirto Nelso Prandini,
professor da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).
A cisticercose, por exemplo, pode atingir a parte craniana da membrana e, apesar
de menos comum, a compressão pode causar comprometimento de nervos
cranianos, hidrocefalia e problemas de visão dupla. Ao longo da medula, pode
provocar dores e sensação de fraqueza nas pernas.
O tratamento é clínico, feito à base de corticóides ministrados com medicamentos
usados para combater a infecção e minimizar as dores. Esses remédios, conta
Prandini, são paliativos, já que o espessamento é irreversível. "Uma alternativa
para alguns casos é a cirurgia, mas é extremamente delicada, atinge as raízes
nervosas e o índice de sucesso não é muito grande. O ideal é conviver com o
problema e ter a operação como última alternativa. É preciso se adaptar."
Por esse motivo, como conta seu marido, Dorine decidiu abolir os remédios e
minimizar os incômodos com aulas de ioga e com autodisciplina. No entanto, com
o passar dos anos, as dores de cabeça e em todo o corpo aumentaram e
passaram a interferir muito em sua rotina. "Eu queria acreditar que nós tínhamos
tudo em comum, mas você estava sozinha em sua aflição", lamenta o autor a
certa altura da carta. Nós acreditamos que ela não estava só.
Carta a D.: História de um Amor
Autor: André Gorz
Co-edição: Annablume/Cosac Naify
Tradução: Celso Azzan Jr.
Quanto: R$ 29 (80 págs.)
Texto Anterior: Envelhecimento: Aposentadoria ativa Próximo Texto: Da radiografia à quimioterapia Índice
|