São Paulo, quinta-feira, 04 de janeiro de 2007
Próximo Texto | Índice

Outras idéias - Dulce Critelli

Ouvir o tempo

[...] O excesso de ruídos artificiais irrita nossos ouvidos e nos afasta da compreensão silenciosa do nosso tempo pessoal

Ganhei uma pequena ampulheta de vidro. De longe, o punhadinho de areia colorido parece levitar. E quando manipulada, um fio cor-de-rosa escoa muito rápido. Tão rápido que o tempo que ela marca parece ser apenas o "agora". Ou será que é do próprio tempo passar assim tão rápido?
Deve ser, porque sempre dizemos que "o tempo voa" ou que ele é "curto demais para o que queremos fazer", já que "a vida acaba". Ou será que o tempo é curto porque a vida acaba?
Mas o tempo pode parecer que passa devagar, que é longo e vazio demais, pois não nos leva a lugar nenhum nem nos traz nada que nos interesse. Tédio... Esse tempo parado perde a característica principal do tempo, que é, exatamente, a de passar. O tempo é a duração do que tem começo e fim. O que não termina nunca -porque nunca começou- é o que chamamos de eterno.
O eterno é sem tempo. Deus é sem tempo. O tempo é coisa só dos homens, porque eles começam e terminam. São finitos. A condição humana da morte instaura a contagem da nossa duração neste mundo e inaugura o tempo. Temos tempo porque morremos.
Tudo no mundo humano é submisso e marcado por esse tempo finito da existência. Prazos de validade, períodos históricos, aniversários, estações do ano, relógios, calendários, agendas, preparação de alimentos, séries escolares, férias, tudo é demarcado pelo nosso tempo de ser. Ao lidar com as nossas atividades, nas suas dimensões de passado, presente e futuro, estamos lidando com o nosso passado, presente e futuro. É o que nos contam nossas angústias, ansiedades, pressa, calma, paciência...
O curioso é que nós jamais vemos esse tempo tão presente e determinante. Nem o cheiramos, o tocamos ou sentimos seu gosto. Nossa mais próxima sensação de tempo é a que nos entra pelos ouvidos. O passar do tempo está no carro que vem e vai, no som das ondas do mar que vêm e vão, nas rajadas do vento, na voz das pessoas. Mas a efetiva percepção de nossa duração e passagem pelo mundo está no silêncio.
No dia-a-dia, o excesso de ruídos artificiais irrita nossos ouvidos e nos afasta dessa compreensão silenciosa do nosso tempo pessoal. Ouvimos os motores e ensurdecemos para nós mesmos. Só no silêncio podemos compreender nossa presença e nossa finitude. E, portanto, ouvir a pergunta essencial que brota desse contato conosco, aquela sobre qual sentido estamos dando ao rápido tempo da nossa existência. Meu desejo para o ano que se inicia é que cada um de nós possa "ouvir o tempo".


DULCE CRITELLI , terapeuta existencial e professora de filosofia da PUC-SP, é autora de "Educação e Dominação Cultural" e "Analítica de Sentido" e coordenadora do Existentia -Centro de Orientação e Estudos da Condição Humana

dulcecritelli@existentia.com.br


Próximo Texto: Pergunte Aqui
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.