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Outras idéias - Dulce Critelli
Ouvir o tempo
[...] O excesso de ruídos artificiais irrita nossos ouvidos e nos afasta da compreensão silenciosa do nosso tempo pessoal
Ganhei uma pequena
ampulheta de vidro.
De longe, o punhadinho de areia colorido
parece levitar. E quando manipulada, um fio cor-de-rosa escoa muito rápido. Tão rápido
que o tempo que ela marca parece ser apenas o "agora". Ou
será que é do próprio tempo
passar assim tão rápido?
Deve ser, porque sempre dizemos que "o tempo voa" ou
que ele é "curto demais para o
que queremos fazer", já que "a
vida acaba". Ou será que o tempo é curto porque a vida acaba?
Mas o tempo pode parecer
que passa devagar, que é longo
e vazio demais, pois não nos leva a lugar nenhum nem nos
traz nada que nos interesse. Tédio... Esse tempo parado perde
a característica principal do
tempo, que é, exatamente, a de
passar. O tempo é a duração do
que tem começo e fim. O que
não termina nunca -porque
nunca começou- é o que chamamos de eterno.
O eterno é sem tempo. Deus é
sem tempo. O tempo é coisa só
dos homens, porque eles começam e terminam. São finitos. A
condição humana da morte
instaura a contagem da nossa
duração neste mundo e inaugura o tempo. Temos tempo porque morremos.
Tudo no mundo humano é
submisso e marcado por esse
tempo finito da existência. Prazos de validade, períodos históricos, aniversários, estações do
ano, relógios, calendários,
agendas, preparação de alimentos, séries escolares, férias,
tudo é demarcado pelo nosso
tempo de ser. Ao lidar com as
nossas atividades, nas suas dimensões de passado, presente e
futuro, estamos lidando com o
nosso passado, presente e futuro. É o que nos contam nossas
angústias, ansiedades, pressa,
calma, paciência...
O curioso é que nós jamais
vemos esse tempo tão presente
e determinante. Nem o cheiramos, o tocamos ou sentimos
seu gosto. Nossa mais próxima
sensação de tempo é a que nos
entra pelos ouvidos. O passar
do tempo está no carro que vem
e vai, no som das ondas do mar
que vêm e vão, nas rajadas do
vento, na voz das pessoas. Mas
a efetiva percepção de nossa
duração e passagem pelo mundo está no silêncio.
No dia-a-dia, o excesso de
ruídos artificiais irrita nossos
ouvidos e nos afasta dessa compreensão silenciosa do nosso
tempo pessoal. Ouvimos os
motores e ensurdecemos para
nós mesmos. Só no silêncio podemos compreender nossa
presença e nossa finitude. E,
portanto, ouvir a pergunta essencial que brota desse contato
conosco, aquela sobre qual sentido estamos dando ao rápido
tempo da nossa existência.
Meu desejo para o ano que se
inicia é que cada um de nós possa "ouvir o tempo".
DULCE CRITELLI , terapeuta existencial e
professora de filosofia da PUC-SP, é autora
de "Educação e Dominação Cultural" e
"Analítica de Sentido" e coordenadora do
Existentia -Centro de Orientação e Estudos da
Condição Humana
dulcecritelli@existentia.com.br
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