São Paulo, quinta-feira, 05 de fevereiro de 2004
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outras idéias

É possível ser rico e feliz?

Quando a empregada que mora num barraco vai trabalhar num palacete, nem ela se sente inferiorizada pela madame nem esta se sente superior à mucama

gustavo ioschpe

Usei este espaço há alguns meses para registrar algumas agruras pela quais vinha passando na insólita tentativa de tentar montar um apartamento no Brasil depois de vários anos morando fora. Usei as histórias como pano de fundo para a constatação de uma praga que assola o país desde há muito: um personalismo em toda e qualquer relação que desemboca no antiprofissionalismo.
Alguns leitores responderam com uma pergunta: é possível desenvolvimento econômico conciliado com as relações interpessoais calorosas que nos distinguem e redimem? É possível enriquecermos como nação sem sucumbir à frieza de americanos, alemães e japoneses?
A pergunta vem me intrigando há um bom tempo, mas calhou de ter voltado à tona num momento em que, pela primeira vez, me parece ser possível vislumbrar alguma resposta que não seja o mero chute ou aquelas embromações oníricas.
Minha visão dos EUA atribuía sua pujança material ao unívoco esforço, centralizador de todas as atividades, em direção ao sucesso, medido por meio do enriquecimento. Há uma sufocante conformidade de todos na luta por esse norte.
Eu pensava que esse "ethos" era tão longevo e avassalador que havia sido completamente introjetado por seus habitantes, que, portanto, seriam felizes de acordo com sua performance profissional. O desejo pelos prazeres da carne e do espírito seria, assim, reprimido com êxito e enviado aos subterrâneos do inconsciente. Podia gerar um tiroteio em escola ou refúgio rumo ao budismo de quando em quando, mas seriam apenas distúrbios marginais, insignificantes.
Ledo engano. Aliás, engano não: para quem já gastou algumas muitas horas lendo sobre psicologia, é burrice mesmo. Somos, afinal, todos humanos, iguais em todos os tempos e latitudes. Freud já havia dito quase tudo que há a dizer sobre o tema em "Civilization and Its Discontents".
Pesquisas recentes, resumidas pelo professor Richard Layard em seminário na London School of Economics, apontam alguns resultados instigantes. Primeiro: neurocientistas vêm identificando áreas do cérebro que correspondem a sensações positivas e negativas, de forma que começamos a poder ter testes de laboratório sobre o bem-estar das pessoas. Esses testes mostram haver forte correlação entre as declarações verbais de uma pessoa sobre seu estado de espírito e a evidência científica a respeito do mesmo. Segundo: os níveis de felicidade de países como EUA e Japão, desde 1950, se mantêm constantes, apesar de seus níveis de renda terem aumentado brutalmente no período. Terceiro e fundamental para o nosso caso: uma grande pesquisa com americanas mediu seu índice de felicidade ao longo do dia. Das 19 tarefas medidas, sexo ficou em primeiro, e a social ficou em segundo. Já o trabalho ficou em penúltimo. Mais deprimente que ele, segundo as pesquisadas, só o caminho para o trabalho a cada manhã.
Logo, no que diz respeito à atitude em relação ao trabalho, brasileiros e americanos podem agir diferente, mas, ao que tudo indica, pensam igual. Em pesquisas internacionais, o índice de felicidade de brasileiros e primeiro-mundistas é quase igual, apesar da vasta diferença de renda. Como pode ser assim?
Parece que a ligação entre felicidade e dinheiro é ser mais relativa do que absoluta: o que faz alguém feliz não é ter muito dinheiro, mas mais dinheiro do que o próximo.
Pois não deveria, então, o Brasil ser um dos países mais infelizes do mundo, com nossas disparidades gritantes de renda? Aí a sociologia parece ter algumas explicações: há evidências de que, quando a diferença é muito grande, o vão torna seus extremos de tal forma dissimilares que um não serve de ponto de referência para o próximo. Estão em mundos diferentes. Quer dizer, quando uma empregada que mora num barraco vai trabalhar num dos palacetes dos abonados, nem a doméstica se sente inferiorizada pela madame nem esta se sente superior à mucama: a última se compara com o pessoal da vila; a primeira, com a turma do carro importado.
Todo esse longo e tortuoso caminho para compartilhar com o leitor algumas possibilidades que me pareceram perturbadoras. Um, que o desenvolvimento do Brasil não se traduziria em maior felicidade para os brasileiros. Dois, que o processo do desenvolvimento pode, em realidade, aumentar a infelicidade, à medida que campos antes solúveis como azeite e vinagre começarão a se misturar. O que gera a pergunta: será que o nosso atraso seria resultado não apenas de elites canhestras e dirigentes inaptos, mas também de um consenso nacional que, a despeito do palavrório contrário, estaria satisfeito com o que está aí e receoso de empreender mudanças radicais e profundas ?


GUSTAVO IOSCHPE, 26, é mestre em desenvolvimento econômico pela Universidade Yale (EUA); e-mail:desembucha@uol.com.br


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