São Paulo, quinta-feira, 05 de fevereiro de 2009
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NEUROCIÊNCIA

Suzana Herculano-Houzel

Aquela na tela sou eu!


[...] Lá estavam elas no quarto, pulando e sacudindo no ar controles remotos que as transportavam para a tela

Meu marido fez uma campanha discreta durante mais de um ano por um Playstation. Mas as crianças tinham um na casa do pai, onde minha filha torcia o nariz para o jogo e, com tantas outras coisas em casa, eu mantinha minha posição de que só compraria um videogame se fosse algo especialmente cobiçado pelas crianças. "Só se eles passarem um mês pedindo de joelhos", eu dizia.
Até que, visitando amigos, descobrimos o Wii. Dada a incomum ausência de risadinhas pela casa, fomos atrás das crianças. Lá estavam elas no quarto, pulando animadamente e sacudindo no ar controles remotos que as transportavam para a tela, onde bonequinhos um tanto toscos davam raquetadas em uma bola de tênis conforme as crianças, de pé, agitavam os braços. Meu menino de cinco anos, que nunca jogara tênis na vida, estava ganhando do amigo pré-adolescente. Os olhos de minha filha, que despreza o Playstation, brilhavam.
Aquilo era mágico: não mais outro videogame sedentário, mas uma espécie de portal para outro mundo, onde você é... você mesmo.
"Cortesia do seu córtex parietal posterior", pensou a neurocientista de plantão.
Assim como seu corpo é seu porque seu córtex parietal posterior o sente mover exatamente como e quando seu córtex pré-motor prevê que ele se mova, o boneco na tela passa a ser uma versão extracorporal de você mesmo -ou mais um "você"- quando ele também se move conforme as ordens do seu cérebro. Claro que o único braço que você sente mover é o seu de carne e osso. Mas seus olhos dizem que o braço daquele bonequinho na tela também se move de acordo. Portanto, aquele na tela também é...
você. Não é uma experiência extracorporal, mas uma experiência corporal estendida: seu corpo é este e aquele, ao mesmo tempo.
Dois dias depois vieram os pedidos, tímidos a princípio. "Mãe, você acha que a gente podia ter um Wii?".
"Não sei, não sei, custa tão caro..." (Que nada, eu já havia cedido instantaneamente ao vê-los jogar, mas por que não capitalizar sobre o que estava por vir?). E logo vieram as barganhas: "Eu paro de roer as unhas se você comprar um!", "E eu uso o aparelho nos dentes o tempo todo!". Diante de ofertas tão irresistíveis, como recusar?
Portanto, desde minha última viagem aos EUA somos os felizes proprietários de uma máquina que exercita nosso córtex parietal posterior de um modo que a evolução certamente não previa: estendendo nossos corpos a uma tela de televisão. Inusitado. E divertidíssimo!


SUZANA HERCULANO-HOUZEL, neurocientista, é professora da UFRJ e autora do livro "Fique de Bem com o Seu Cérebro" (ed. Sextante) e do site "O Cérebro Nosso de Cada Dia" (www.cerebronosso.bio.br)

suzana.herculano-houzel@grupofolha.com.br


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