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São Paulo, quinta-feira, 05 de junho de 2003
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foco nela

Modelista cria moda para deficiente físico

Marcelo Barabani/Folha Imagem
A professora Maria de Fátima Grave


RODRIGO GERHARDT
FREE-LANCE PARA A FOLHA

Uma profissional da área de moda decidiu se dedicar a um nicho nada glamouroso nem luxuoso do mundo fashion. Na verdade, a um consumidor completamente ignorado pelo mercado: o deficiente físico. Maria de Fátima Grave começou a pesquisar esse nicho quatro anos atrás, quando trabalhava no departamento de moda do Sesi, que ficava um andar acima do centro de reabilitação de deficientes físicos da entidade. Certa vez, foi procurada por uma assistente social do andar de baixo para ajudar um menino com hidrocefalia (aumento patológico da quantidade de líquido cefalorraquidiano no crânio) a se vestir.
Grave foi então às compras em busca de uma roupa apropriada ao problema do menino, mas não encontrou nenhuma peça que servisse. Criou então o seu primeiro modelo ergonômico para deficiente e não parou mais de estudar o assunto, sempre com o apoio técnico de um médico -o ortopedista e homeopata José Carlos Teixeira do Valle- e, há alguns meses, da Fundação Selma, especializada em neurologia.


"Até um bebê consegue tirar uma fralda que está incomodando, mas já vi crianças em cadeira de rodas com escaras causadas pelas costuras da roupa. Existe um estresse muito grande causado pelo vestuário"


Há pouco mais de um mês, a professora causou um furor na 2ª Feira Internacional de Tecnologias em Reabilitação (Reatech), quando apresentou um desfile com 14 deficientes em cadeiras de rodas e muletas vestindo modelos exclusivos e ergonômicos. Leia a entrevista abaixo.

Folha - Qual a dificuldade que os deficientes físicos encontram para se vestir?
Maria de Fátima Grave -
Pessoas com deficiência nas mãos podem levar até 20 minutos para abotoar uma camisa. Quem tem sensibilidade só em uma mão, por exemplo, não consegue colocar uma calça normal, com zíper ou botão; a peça sobe enroscando no joelho. Se falta sensibilidade em uma das pernas, você não imagina o que um bolso, um zíper ou uma costura grossa fazem. Até um bebê consegue tirar uma fralda que está incomodando, mas já vi crianças em cadeira de rodas com escaras causadas pelas costuras da roupa. Existe um estresse muito grande causado pelo vestuário. Conheci um senhor de idade que usava várias Havaianas amarradas ao corpo para não se machucar quando se arrastava. Ele tem de ter uma alternativa.

Folha - E como a modelagem ergonômica pode ajudá-los?
Grave -
A ergonomia trata da linguagem do corpo, das suas formas e dos seus movimentos. Nesse conceito, buscamos resgatar as funções dos recortes e das costuras, a posição dos pontos e dos bolsos, valorizando a liberdade e levando em conta um ser que pensa, que sente e que age. Não é apenas sair colocando velcros nas roupas, mas analisar como o indivíduo vai interagir com eles. Quase todo deficiente físico usa bolsas para carregar documento, dinheiro ou caneta, porque eles são ativos, mas acham o acessório feio. Aí aderimos ao utilitário, um bolso feito com o próprio tecido e com velcro, que pode ser fixado à roupa e tirado quando a pessoa quiser. É possível fazer uma modelagem ergonômica, uma roupa com caimento perfeito, elegante e que não prejudique o corpo.

Folha - O seu trabalho é personalizado?
Grave -
Não personalizamos o indivíduo, mas o tipo de deficiência. É certo que ela se apresenta em níveis diferentes em cada indivíduo, mas temos referências para as diversas situações. No caso dos cadeirantes, por exemplo, a frente das roupas é muito mais valorizada do que a parte de trás, já que ele fica sentado a maior parte do tempo. Estamos tentando montar um centro de vendas na Fundação Selma, mas procuro patrocínio. E esse é um público grande no Brasil, são cerca de 24 milhões de deficientes no país.

Folha - Como deve ser a roupa para pessoas que tiveram um membro amputado, por exemplo?
Grave -
Elas gostam que a roupa cubra a falta do membro. Descobri que, muito mais do que a vergonha de expor a deficiência, os amputados têm a sensação de que o braço é mais comprido quando usam uma camisa com a manga balançando ao caminharem. Apenas devem ser utilizados materiais mais firmes para disfarçar, mas não há muita diferença. Os recortes devem proporcionar um bom caimento no corpo, com equilíbrio e simetria no tronco.

Folha - Como a sua pesquisa foi feita?
Grave -
Nestes quatro anos, visitei centros de reabilitação e fiz entrevistas com vários perfis de deficiente, dos cadeirantes que ficam próximos aos semáforos até os dos times de basquete formados por atletas paraplégicos. Ouvi fisioterapeutas e médicos do Hospital das Clínicas de São Paulo. No final do ano, pretendo lançar um livro com tudo o que consegui reunir e produzir sobre o assunto.

Folha - Enfrentou dificuldades?
Grave -
Sim. A falta de informações e o preconceito foram as principais. Fiz um curso de moda na França e busquei informações nos Estados Unidos e na Bélgica, sem sucesso. No Brasil, cheguei a ouvir em um centro acadêmico de uma universidade que eu estava querendo colocar uma fechadura numa porta torta.

Folha - O aspecto estético da roupa ergonômica não é descartado?
Grave -
Eu não me preocupo com as tendências de moda, mas faço questão de ter um designer têxtil trabalhando comigo. Ser belo nos faz sentir melhor interiormente. A moda não é só das patricinhas e mauricinhos que estão por aí.


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