São Paulo, quinta-feira, 05 de junho de 2008
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Em defesa de nossa novela diária

Saber da vida dos outros virou coisa feia. Quem se interessa disfarça. Hoje é assim: ninguém tem a ver com a vida dos outros. Mas, se for assim, onde é que se vai aprender a viver?
Bem viver se desenvolve somando (muitas vidas alheias) e fazendo os "noves fora". Da vida alheia nos inteiramos ouvindo histórias, observando, perguntando, imaginando. Meter-se na vida dos outros é palpitar a partir de julgamentos e/ou de pré-conceitos, o que facilmente pode descambar em maledicência ou na popular fofoca. Não é disso que trato aqui.
Apesar de a escuta ser aparentemente uma condição passiva, ela de fato nem sempre o é, pois ouvir nos enriquece, aumentando nosso conhecimento sobre formas de vida e nos permitindo usufruir do saber que somos confiáveis. Quem conta confia.
Ao ler narrativas ou ao assistir a teatro ou a novelas, recebemos pacotes de intimidades -mas são diferentes do relato pessoal, que depende de sincronicidade. O mais tímido, o mais eremita pode ler livros, pode assistir a peças e a novelas, todos criados para atrair solidariedade e identificação. Mesmo neste texto, que não é ficção, pretendo obter simpatia aos meus argumentos. Muito mais ocorre na ficção.
As novelas trazem mais ganchos para a intimidade. Sabemos que naquela mesma hora outros tantos estão conosco, mesmo que estejamos sem ninguém. De qualquer forma, teremos assunto amanhã com quem viu em outro lugar.
Dia após dia, acompanhamos o desenvolver da trama. Fazemos complexas relações de identificação com atores e personagens. Nos bate-papos, personagem, ator e narrador estão na mesma pessoa.
Carentes que somos do velho portão, do papo com os vizinhos, com os quais o contato diminui cada vez mais, vamos direto para os espaços vivenciais alternativos comuns a todos, em geral eletrônicos ou públicos, como teatro e circo.
As igrejas evangélicas suprem boa parte dessa necessidade de troca, se bem que falham em narrativas porque templo não é lugar de fofocas.
Os espaços religiosos são fontes de regras do bem viver.
Mas a minha intenção é defender a importância da narrativa na formação do cidadão, integrando-o em seu próprio meio. Como conhecer esse meio senão conhecendo a vida de seus membros?
Existe novela boa e novela ruim, assim como livro ou fábula ou conto de fadas.
É tudo história para nela nos mirarmos e nos sentirmos pertencentes ou excluídos, iguais ou um pouquinho diferentes.
Neste momento, cabem comparações.
Ver novela, assim como ler livros, é um jeito de sabermos quem somos e onde estamos.
Se é parte da grande arte ou artesanato, se é de alta classe?
Podemos até levar em conta, mas não nos esqueçamos de que seguir novela diária, séries, livros, acompanhar o dia-a-dia da política constituem a melhor forma de reviver a tribo ou a aldeia, berço da nossa humanidade. É aí que se tece a trama do imaginário das comunidades humanas.


ANNA VERONICA MAUTNER, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed. Ágora)

amautner@uol.com.br


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