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Em defesa de nossa novela diária
Saber da vida dos outros
virou coisa feia. Quem
se interessa disfarça.
Hoje é assim: ninguém
tem a ver com a vida dos outros.
Mas, se for assim, onde é que se
vai aprender a viver?
Bem viver se desenvolve somando (muitas vidas alheias) e
fazendo os "noves fora". Da vida alheia nos inteiramos ouvindo histórias, observando, perguntando, imaginando. Meter-se na vida dos outros é palpitar
a partir de julgamentos e/ou de
pré-conceitos, o que facilmente
pode descambar em maledicência ou na popular fofoca.
Não é disso que trato aqui.
Apesar de a escuta ser aparentemente uma condição passiva, ela de fato nem sempre o é,
pois ouvir nos enriquece, aumentando nosso conhecimento sobre formas de vida e nos
permitindo usufruir do saber
que somos confiáveis. Quem
conta confia.
Ao ler narrativas ou ao assistir a teatro ou a novelas, recebemos pacotes de intimidades
-mas são diferentes do relato
pessoal, que depende de sincronicidade. O mais tímido, o mais
eremita pode ler livros, pode
assistir a peças e a novelas, todos criados para atrair solidariedade e identificação. Mesmo
neste texto, que não é ficção,
pretendo obter simpatia aos
meus argumentos. Muito mais
ocorre na ficção.
As novelas trazem mais ganchos para a intimidade. Sabemos que naquela mesma hora
outros tantos estão conosco,
mesmo que estejamos sem ninguém. De qualquer forma, teremos assunto amanhã com
quem viu em outro lugar.
Dia após dia, acompanhamos
o desenvolver da trama. Fazemos complexas relações de
identificação com atores e personagens. Nos bate-papos, personagem, ator e narrador estão
na mesma pessoa.
Carentes que somos do velho
portão, do papo com os vizinhos, com os quais o contato diminui cada vez mais, vamos direto para os espaços vivenciais
alternativos comuns a todos,
em geral eletrônicos ou públicos, como teatro e circo.
As igrejas evangélicas suprem boa parte dessa necessidade de troca, se bem que falham em narrativas porque
templo não é lugar de fofocas.
Os espaços religiosos são fontes
de regras do bem viver.
Mas a minha intenção é defender a importância da narrativa na formação do cidadão,
integrando-o em seu próprio
meio. Como conhecer esse
meio senão conhecendo a vida
de seus membros?
Existe novela boa e novela
ruim, assim como livro ou fábula ou conto de fadas.
É tudo história para nela nos
mirarmos e nos sentirmos pertencentes ou excluídos, iguais
ou um pouquinho diferentes.
Neste momento, cabem comparações.
Ver novela, assim como ler
livros, é um jeito de sabermos
quem somos e onde estamos.
Se é parte da grande arte ou
artesanato, se é de alta classe?
Podemos até levar em conta,
mas não nos esqueçamos de
que seguir novela diária, séries, livros, acompanhar o dia-a-dia da política constituem a
melhor forma de reviver a tribo ou a aldeia, berço da nossa
humanidade. É aí que se tece a
trama do imaginário das comunidades humanas.
ANNA VERONICA MAUTNER, psicanalista da
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é
autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed. Ágora)
amautner@uol.com.br
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