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Jornadas espirituais
Cada vez mais pessoas escolhem roteiros de viagem em
busca de confirmação de fé ou de autoconhecimento
IARA BIDERMAN
FREE-LANCE PARA A FOLHA
Para um número cada vez maior de pessoas, viajar apenas por turismo não basta. O viajante de corpo e alma busca algo além de lazer ou consumo: ele parte ao encontro da espiritualidade ou do seu "eu verdadeiro". Toda viagem espiritual é um movimento em busca de um centro, exterior e interior. Em geral, o destino geográfico é um lugar sagrado, geralmente ligado a uma religião. Mas a meta é o reencontro com um centro mais subjetivo: o reflexo da presença
divina em cada um ou com uma parte de si
da qual a pessoa está afastada, diz Armando Colognese, chefe do departamento de
formação em psicanálise do Instituto Sedes
Sapientiae, em São Paulo.
"O deslocamento espacial em busca do
sagrado sempre esteve presente na história
da humanidade", diz Yone de Carvalho,
chefe do departamento de história da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC- SP). Há cerca de 2.000 anos, por
exemplo, cristãos dirigem-se aos lugares
considerados sagrados como Roma, na Itália, e Jerusalém, em Israel. Na Idade Média,
a estabilidade econômica e social e o poder
que a religião exercia sobre a sociedade ocidental fez recrudescer esse movimento, e as
peregrinações foram fonte de enriquecimento dos locais que guardavam relíquias.
Ultrapassar limites
Mas, se "qualquer viagem pode redimensionar fronteiras", como diz Giselle Groeninga, da Sociedade Brasileira de Psicanálise, o viajante espiritual dá um passo a mais: o destino e o
roteiro possibilitam o rompimento das
fronteiras entre o aqui e o além e a superação de limites individuais.
Alguns elementos comuns aos diversos
"pacotes" desse tipo de viagem -que incluem visitas a lugares sagrados, contato
com a natureza e retiros- facilitam esse
movimento de transformação. A quebra da
rotina e o alto grau de envolvimento aumentam a intensidade da experiência. "Essas viagens podem trazer mudanças, desde
que já venham sendo há tempos preparadas internamente pelo viajante. O des
locamento terá o significado de um ritual
de passagem", acredita Groeninga.
Normalmente, os "roteiros da alma" proporcionam maior espaço para a reflexão
porque limitam (ou até eliminam) os estímulos de consumo e as atividades de lazer,
ao mesmo tempo que oferecem desafios
para serem superados. "Essas características podem favorecer dois tipos de pessoas", segundo Colognese: as que, num
momento de crise, resolveram dar uma
guinada e as que precisam ganhar autoconfiança para enfrentar a vida adulta.
Há também aqueles que procuram apenas um alívio imediato para as pressões cotidianas. O psicólogo Ricardo Sasaki, diretor do centro budista Nalanda, em Belo
Horizonte, conta que cerca de metade dos
participantes de cursos de meditação de
fim de semana não são budistas. "Na consciência popular, há uma idéia vaga de que a
meditação é uma coisa boa, relacionada à
calma e ao relaxamento. Muitos fazem esse
tipo de retiro para aprender algo prático
que podem aplicar em suas vidas", diz.
Céticos em geral e estressados em particular têm boas justificativas científicas para
hospedar-se nesses mosteiros: imagens escaneadas de cérebros de monges budistas
confirmam os efeitos relaxantes da meditação. Para os adeptos, no entanto, o que importa nesses retiros é a saída do mundo e a
volta ao centro. Nem sempre é fácil e tranqüilo -há retiros em que os praticantes ficam dias sem poder falar.
Muitos roteiros incluem o contato com a
natureza, que também funciona como um
fator antiestressante e reequilibrador. Para
o psicólogo e estudioso de religiões Alberto
Vasconcellos Queiroz, da Secretaria de Defesa do Cidadão da Prefeitura de São José
dos Campos (SP), essa proximidade é a
mais indicada para quem está em busca
apenas de equilíbrio ou alívio psicológico.
Queiroz acredita que "a natureza tem a
qualidade intrínseca de refrescar a alma e,
ao mesmo tempo, não impõe dúvidas sobre culpas e méritos pessoais". Se o viajante
não estiver "preparado" para entender os
símbolos e ritos de cada religião, não terá
ferramentas para expiar essas culpas -sacrifício e penitência são elementos importantes desse tipo de viagem.
O antropólogo Edin Abumanssur, do departamento de Teologia e Ciências das Religiões da PUC-SP, que atualmente realiza
uma pesquisa sobre o culto a Bom Jesus do
Iguape, no litoral sul de São Paulo, acha que
também os viajantes de religiosidade mais
difusa, ou mesmo os céticos, estão dispostos a uma espécie de sacrifício quando empreendem uma viagem de cunho espiritual. Mas, diferentemente da população
que se assume religiosa (como a que vai a
Iguape), "o sacrifício é voltado para o "eu", e
a privação serve para superar limites pessoais, e não para fazer jus a uma graça recebida ou pedida", diz Abumanssur.
Em busca do eu
"Essas pessoas não se
satisfazem com as respostas das religiões
institucionalizadas e buscam soluções pessoais para a questão da espiritualidade", diz
José Guilherme Magnani, coordenador do
Núcleo de Antropologia Urbana da Universidade de São Paulo. No conjunto de soluções estão as viagens para lugares considerados densos de significado. Os resultados obtidos não são apenas imaginários,
segundo Magnani. "No lazer espiritualizado, elas encontram uma forma mais saudável e tranqüila de ocupar o tempo livre, que
é usado para buscar o aprimoramento pessoal e o cultivo das potencialidades do corpo e da mente", diz o antropólogo.
Além do aprimoramento pessoal e do
efeito transformador, a viagem espiritual
tem um aspecto de confirmação. No caso
do peregrino religioso, ajuda a revigorar a
fé que professa. Quando não é um fiel, o
viajante vai em busca de uma identidade
que não sabe muito bem qual é.
"A sociedade de hoje, por desfazer as tradições que vinculavam as pessoas, deixou-as desencaixadas. Isso produziu uma camada de "buscadores" atrás do conhecimento de si próprios e de outros sistemas
de pensamento como alternativa aos valores liqüefeitos da modernidade", diz o sociólogo Antônio Flávio Pierucci, da USP.
E é preciso mesmo viajar para que isso
aconteça? "Muitas vezes é ilusão: as pessoas
vão buscar fora algo que poderiam encontrar no lugar onde estão", diz o antropólogo Magnani. Para o médico espanhol Alberto Martín, autor de "Por el Camino de
Santiago -Reflexiones sobre Filosfía, Arte
y Espiritualidad" (Ediciones 29), o homem
religioso já está em "peregrinação" antes
mesmo de dar o primeiro passo em determinada rota geográfica e, a rigor, não necessita fazê-lo. "A viagem física é mais um
símbolo e um suporte para a viagem interior. Mas, se surgir a oportunidade, pode
ser um auxílio poderoso para esse movimento, seja pela influência espiritual transmitida por figuras e lugares santos, seja pelas experiências materiais vivenciadas no
caminho, como os momentos de dificuldade ou de silêncio tranqüilo", afirma.
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