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Família
Crianças já entendem que o casamento não é para sempre, mas especialistas alertam que há uma tendência em buscar relações superficiais e menos trabalhosas
Olhar infantil
Eduardo Knapp/Folha Imagem
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Thaís Fagali, 7, que é filha única, mas tem três irmãos, desenha os pais |
TATIANA DINIZ
DA REPORTAGEM LOCAL
O namorado da minha mãe. A avó do meu irmão. O filho do marido da minha mãe. O pai da minha irmã. A
mulher do meu pai. A mulher do pai do meu irmão.
Personagens como esses estão cada vez mais presentes na narrativa cotidiana das crianças. E, embora às vezes até soe
complicado para quem as ouve, elas falam sobre eles com uma
naturalidade evidente.
Em um universo no qual o formato tradicional de família -aquela formada por marido,
mulher e filhos- coexiste com uma variedade
cada vez mais complexa de arranjos não-nucleares, especialistas começam a se debruçar
sobre como as crianças estão encarando, hoje,
a família e o amor.
O assunto é o ponto de partida do recém-lançado "Amor, Casamento, Família, Divórcio... e Depois, Segundo as Crianças" (Summus Editorial, R$ 44, 240 págs.). Nele, as autoras Rosane Mantilla de Souza e Vera Regina
Ramires apresentam os resultados de pesquisas conduzidas na área de psicologia.
"Não é um livro de orientação para pais separados. É muito mais uma publicação voltada para aqueles profissionais que precisam
acompanhar essas crianças que são filhas de
famílias redesenhadas", afirma Souza. "É uma
tentativa de introduzir a ótica infantil e permitir pensar como elas na hora de tomar decisões
e também de ajudar professores, juízes, advogados, psicólogos, assistentes sociais e jornalistas a perceberem como a criança está assimilando isso tudo", completa.
O livro reúne constatações relevantes e que
até então tinham recebido pouca atenção. A
primeira delas é justamente o fato de que as
crianças passaram a estender sua percepção
de "familiar" a vários outros atores que não
são o pai, a mãe e os irmãos.
São capazes, por exemplo, de reconhecer como cuidador um adulto com quem elas não
têm nenhum laço biológico, como o novo
companheiro do pai ou da mãe ou um amigo
que veio morar na mesma casa, após a separação dos pais.
"Como se orientam pelos vínculos objetivos,
as crianças e os adolescentes são quem melhor
desenvolvem a compreensão dessa aparente
"bagunça'", explica Souza.
Em uma tese de mestrado defendida pelo
departamento de psicologia da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo),
Souza acompanhou 80 crianças -todas de escolas particulares da capital paulista, com idades entre cinco e 11 anos-, observando quais
eram as pessoas que elas identificavam como
parte da família.
"Depois de um divórcio, uma família tem de
recriar a si mesma, tem de gerir-se, e a criança
é receptiva a uma variedade enorme de arranjos. É ela que acaba dizendo que quer ir brincar
com o filho do ex-namorado da mãe, que até
ontem era quase irmão na configuração familiar, mesmo depois de a mãe ter terminado o
namoro", observa.
INSTABILIDADE
Na opinião de Souza, as famílias não-nucleares sempre foram avaliadas como "instáveis",
mas não se leva em consideração a
inconstância que existe dentro de muitos casamentos.
"Uma família divorciada é instável? Sim,
mas a vida é instável. Essa estabilidade muitas
vezes não existe no casamento -e ninguém
cobra. No Brasil, a idéia predominante ainda é
a de que, depois de uma separação, "a pobrezinha da criança vai ficar louquinha". Não é assim."
Ela explica que as separações mais danosas
às crianças são aquelas em que os pais não se
libertam emocionalmente um do outro e seguem se atacando por longos períodos.
"Internamente, esses pais não conseguem
perceber que não fazem mais parte da vida do
outro. E seguem se atacando, falando mal na
frente da criança, pedindo mil revisões do valor da pensão. Na verdade, estão ligados e prisioneiros da raiva, do dissabor e do ressentimento. E a raiva é um sentimento que aprisiona muito mais do que o amor. Nesses casos, é
fundamental procurar ajuda profissional", comenta.
"Até que a morte os separe." A conclusão do
casamento católico não faz mais tanto sentido
para as crianças. Em uma tese de mestrado defendida na Universidade do Vale do Rio dos
Sinos (RS), a psicóloga Vera Ramires acompanhou 85 crianças com idades entre cinco e 15
anos, pesquisando o que é o amor.
Segundo o estudo, as crianças não acreditam
mais no amor "para sempre" e consideram o
fim das relações conjugais algo previsível. "Para elas, os adultos casam porque se amam e se
separam porque o amor acaba. O amor conjugal aparece como algo reversível e até mesmo
frágil, se comparado com o amor entre pais e
filhos e entre amigos. Dos últimos, esperam
que resista a obstáculos, como conflitos e distância. Do conjugal, não", conclui.
A Folha visitou a escola Teia Multicultural,
em São Paulo, para conversar com alunos de
seis a nove anos sobre família, casamento e
amor. "Eu não quero casar. Quando é casado,
a mulher fica fazendo comida, e o homem fica
vendo futebol", diz Julia, 7, filha de pais separados. "Eu quero casar sim. Mas, se eu ou ela
quiser se separar, a gente se separa", rebate
Leonardo, 7.
SUPERFICIAIS
Para a psicóloga Natércia Tiba, fundadora
do Instituto Integração Relacional, há pontos
preocupantes nessa nova percepção. "Estamos diante de uma geração que está aprendendo inconscientemente que, quando aparecem dificuldades numa relação, é hora de desistir e trocar de parceiro."
Especialistas dizem que há uma tendência à
busca contínua por relações mais superficiais
e menos "trabalhosas". "Elas querem estar felizes o tempo todo e não sabem mais como lidar com os momentos de tristeza ou de dificuldade. Quando surgem conflitos, rompem",
afirma Tiba.
"Mas o conflito é uma característica de qualquer relação profunda. Quem não aprende a
enfrentá-lo vai viver sempre buscando relações superficiais, sem intimidade nem muito
envolvimento afetivo. É só nesse tipo de relação que sempre está tudo bem."
O preço, diz Tiba, é a solidão. "A prática de
separação é levada aos amigos e a todas as esferas da vida. Se não está bom, ele vai embora,
troca. Abandona e é abandonado. Acompanho adolescentes que dizem que é impossível
ter qualquer relação para a vida toda."
SEPARAÇÃO
Apesar da tolerância aos novos arranjos familiares, os especialistas são unânimes em
afirmar que a separação continua a se configurar como uma etapa dolorosa e capaz de gerar
traumas na infância.
"A criança sempre é afetada de alguma forma. Compreender a situação é uma coisa, vivê-la é outra. Mesmo em separações amistosas, em que o pai vai morar na esquina para
continuar vendo o filho, o que a criança queria
é que ele estivesse em casa, e não lá", diz Ana
Maria Massa, coordenadora do Centro de Referência da Criança e do Adolescente da Universidade Federal de São Paulo.
Na casa de Giulio, 7, os irmãos dele -Jorge,
3, e Giácomo, 15- são filhos de pais diferentes. "Eu chamo a avó do meu irmão grande de
vó, mas é avó mesmo dele", conta Giulio.
A mãe, a terapeuta corporal Adriana Zumstein, 42, foi o elo entre as duas famílias. Em
breve, ela e o atual marido, o psicólogo Alberto Zumstein, 42, receberão em casa o pai de
Giácomo, o massagista Giovanni Boschetti,
43, que vive na Suíça e vem ao Brasil.
"Assim como há casamentos que dão
errado, há separações que dão errado. São
aquelas em que as pessoas continuam com
raiva, transformando detalhes em problemas.
Tivemos sorte. Essa separação deu certo", diz
Alberto. "Para as crianças, tudo foi muito
natural. A separação só somou, a família
cresceu. E todos se tornaram amigos", conclui
Adriana.
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