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Fórmulas simplistas "empobrecem" livros de auto-ajuda
IARA BIDERMAN
FREE-LANCE PARA A FOLHA
Para tudo nesta vida há remédio, especialmente se você for comprá-lo na
livraria. Há oferta de "remédios" editoriais para qualquer circunstância
da vida e todos os momentos da existência, do nascimento à morte, ou melhor, para até antes e depois de nascer e morrer. Tudo começou quando um
médico escocês escreveu um manual para ensinar à classe operária como
chegar ao paraíso do sucesso individual.
"Self-Help" (auto-ajuda, em inglês), o
título do livro de Samuel Smiles (1812-1904), inaugurou e deu nome à literatura
de auto-ajuda em 1859, mais de um século antes do chamado boom de vendas
desse gênero de livro. Foi um sucesso de
vendas. E, para os conceitos atuais, a obra
pioneira segue o padrão dos exemplares
contemporâneos.
O que mudou a partir da segunda metade do século 20 foi o leque de assuntos.
De como cozinhar um arroz soltinho ao
método infalível para arranjar um namorado, um emprego ou, melhor ainda, ambos (como propõe um título, no melhor
estilo "pague um, leve dois"); cuidados
para diabéticos ou para evitar rugas e celulite; como impedir a entrada das drogas
na vida de seu filho ou as birras dele; como conviver com os sogros ou com o mal
de Alzheimer; como ficar milionário ou
descobrir a chave da felicidade. Não falta
assunto para os livros que, gostem ou não
seus autores, podem ser encaixados no
gênero auto-ajuda.
Uma marca do gênero: os textos não se
destinam unicamente à leitura, possuem
um cunho prático, pressupondo que o
leitor passará da leitura à ação. O que os
diferencia são as formas de conduta sugeridas para a obtenção de um bem ou a
solução de um problema, que pode ser de
ordem espiritual, mundano, sexual, profissional, afetivo, familiar ou medicinal,
diz o sociólogo Francisco Rüdiger, autor
de "Literatura de Auto-Ajuda e Individualismo" (ed. Faurgs).
Rüdiger credita o sucesso do gênero à
incapacidade do homem moderno de enfrentar seu tempo com as coordenadas
da modernidade -o pensamento racional e científico. Em épocas anteriores da
história ocidental, os livros religiosos e os
tratados morais da antigüidade grega
bastavam para explicar o mundo e estabelecer formas de conduta.
Agora, num mundo cada vez mais
complexo e cruel, as explicações racionais também não dão conta da vida cotidiana, diz o sociólogo Emir Sader, da
Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
Para ele, os livros de auto-ajuda exploram essas condições cruéis e desacreditam as soluções coletivas, vendendo ao
leitor normas individualistas de sobrevivência na selva. Nada muito diferente do
que o escocês propunha aos trabalhadores no tempo da Revolução Industrial.
Sader não faz concessões a esse nicho,
para ele abastecido por compêndios de
receitas simplistas e filosofia barata.
Com a preocupação legítima de vender,
as editoras dão aos livros de áreas tão díspares como administração, moda e esoterismo uma embalagem parecida, com
títulos que sugerem uma resposta utilitária e simples para os problemas. Marino
Lobello, vice-presidente de comunicação
da Câmara Brasileira do Livro, afirma: título não é conteúdo, é feito para vender,
ter apelo de consumo. Portanto um alerta
ao consumidor na hora da compra do livro: o título não dá indicações, necessariamente, do conteúdo e da qualidade.
O embaralhamento aumenta diante da
prateleira da loja, onde se encontram, lado a lado, "dicas" para ser feliz e informações sérias de medicina para leigos. A boa
notícia é que existem recursos que ajudam a separar o joio do trigo, o livro que
ajuda do que engana.
A apresentação de uma fórmula única e
definitiva para um problema, especialmente na área da psicologia e do comportamento, é um indicador de que o leitor corre riscos. "O engano vem da ilusão
das receitas prontas, abrindo-se mão dos
recursos, da criatividade e da individualidade de cada um", afirma a psicanalista
Giselle Câmara Groeninga, da Sociedade
Brasileira de Psicanálise de São Paulo.
É um paradoxo do gênero: ao mesmo
tempo que propõe um caminho pela hipervalorização individual ("O que Importa Sou Eu!", diz um título à venda),
produz um achatamento das individualidades em fórmulas massificadas, como
se todos tivessem as mesmas condições
de vida e se defrontassem com as mesmas situações cotidianas.
"Livro bom é aquele que faz a pessoa
perguntar sobre a vida, não o que traz a
resposta pronta", diz a psicóloga e colunista da Folha Rosely Sayão. São os livros
que evidenciam os problemas, alertam
para a sua gravidade e para o fato de que
não existem soluções simplistas, mantendo a vida intelectual na tensão e no dinamismo necessários para a existência
neste mundo, diz Rüdiger.
Mas nem tudo é modelo "tamanho único" nesse balaio de livros voltados a ajudar o homem a enfrentar seus problemas
cotidianos e existenciais. A psicanalista
Groeninga, embora rejeite o rótulo de auto-ajuda ("é falsa a idéia de auto-ajuda
emocional, de que se pode prescindir do
outro"), acha que alguns livros podem
auxiliar, "mostrando muito mais um caminho dentre os possíveis do que propriamente um fim".
Lobello pondera que o fato de a pessoa
ser seduzida por um livro e ter a chance
de ler já é uma ajuda positiva. "Faço parte
de uma corrente mais generosa, que diz
que precisamos formar leitores, propagar o hábito da leitura, antes de patrulhar
os conteúdos", diz.
Força no trabalho
O fim do emprego clássico e a dificuldade de encontrar
espaço no mercado de trabalho são bastante explorados pelo mercado da auto-ajuda. E também nos livros dessa temática há muita bobagem em meio a coisas
boas. Para distingui-las, José Carlos Durand, do Centro de Estudos da Cultura e
do Consumo da Fundação Getúlio Vargas, diz que é preciso abrir o livro e ler.
Procurar as referências do autor (formação acadêmica, trabalhos), checar no índice se a seqüência de capítulos cobre o
que se procura na obra e ler as dez primeiras páginas. "Essas dez páginas são
decisivas para sentir se o que está escrito
faz sentido", diz. Outro bom expediente:
observar se o texto abusa de superlativos
e adjetivos como infalível, definitivo ou
poderoso. "São técnicas de convencimento primárias para vender qualquer
coisa aos crédulos", afirma Durand.
Na saúde
Tal qual o trabalho (ou a falta dele) anda o estresse. E assunto é tratado sob as mais diversas abordagens: de
científica a declaradamente mística. Na
área de saúde mental, por exemplo, José
Roberto Leite, do Departamento de Medicina Comportamental da Unifesp, acha
imprescindível que o leitor recorra às
abordagens apoiadas em métodos comprovados pela ciência. Assim, verificar as
credenciais do autor é o primeiro passo.
"Se for alguém ligado a uma universidade com reconhecimento científico, é quase certo que isso vai estar escrito na contracapa ou orelha do livro", afirma. Os títulos que propõem estratégias para lidar
com distúrbios de humor, ansiedade e estresse podem ajudar de fato se apoiados
em fundamentos científicos -procure
as fontes (pesquisas, estudos) em que se
basearam, diz o médico. E isso não exclui
toda técnica alternativa. A da meditação,
por exemplo, é objeto de pesquisa.
"Também é preciso dar uma lida para
ver se é possível reproduzir as estratégias
propostas. Uma boa parcela dos livros
não ajuda por um motivo simples: identificam o problema, falam uma série de
coisas que têm de ser feitas, mas não ensinam como fazer", diz Leite.
É um bom começo, mas não um critério infalível nem definitivo, para usar
dois adjetivos caros ao gênero. Na área de
medicina, os livros de auto-ajuda são
bem-vindos, segundo Antonio Carlos
Lopes, presidente da Sociedade Brasileira
de Clínica Médica, desde que elaborados,
supervisionados e revisados por profissionais competentes, ou seja, médicos especializados na área em questão.
"Um certo conhecimento "popular" da
medicina é extremamente importante,
não está fora do circuito de cultura geral.
Devia ser ensinado desde a escola do ensino fundamental", acredita Lopes. O clínico-geral acha que um livro que traz informações em linguagem acessível sobre
como conviver com uma doença, os cuidados necessários, os hábitos de vida recomendados e como atenuar o mal é
uma contribuição para a comunidade
-pacientes e quem convive com eles. A
dificuldade de transformar a linguagem
científica em um texto para leigos é relativa. Segundo Lopes, todo médico tem de
saber como explicar ao doente o que está
acontecendo de forma clara. Então deve
ser capaz de revisar o texto do livro para
corrigir erros e evitar mal-entendidos.
"O problema são os livros que começam a descrever o quadro clínico, os sintomas científicos e dão respostas únicas
aos sintomas. Nesse caso, podem induzir
o indivíduo a se autodiagnosticar", diz
Lopes.
No quesito dietas de emagrecimento, o
problema é basicamente o mesmo: a
massificação. "É preciso respeitar os hábitos, as características físicas de cada um
para que os resultados se mantenham a
longo prazo", diz o endocrinologista Antônio Roberto Chacra, da Unifesp. Para
ele, as diferentes dietas da moda são apenas novas roupagens para o mesmo princípio: comer menos e restringir carboidratos. "Se a pessoa seguir, acaba perdendo peso momentaneamente. O difícil é
perder e manter", diz ele. O melhor é gastar o dinheiro em livros de nutrição voltados para emagrecimento, que trazem
informações sobre os alimentos, tabelas
de calorias e substituições e focam a reeducação alimentar. Informação de qualidade é sempre útil. E ajuda.
Religião e esoterismo
Para efeito
de classificação, os livros de religião são
considerados área distinta da auto-ajuda,
mas os títulos das duas áreas estão sempre esbarrando um no outro. Segundo
Rüdiger, os livros de auto-ajuda apresentam uma suposta fórmula para o homem
moderno combinar elementos que estão
em contradição, como ciência e religião,
misticismo e realismo. E, nesse sentido,
as tradições orientais vieram a calhar,
porque partem de uma visão de mundo
não-cartesiana (baseada na razão). Nas
prateleiras, há de tudo, de clássicos da literatura zen ou taoísta a livros que misturam elementos superficiais de várias tradições, num pacote de conforto espiritual
fácil e rápido.
"É preciso tomar cuidado quando o livro parece dar tudo de maneira muito fácil. Valores de uma cultura distante não
vêm por osmose", diz Emídio Moufarrige, coordenador editorial da Associação
Palas Athena.
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