São Paulo, quinta-feira, 06 de maio de 2004
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Fórmulas simplistas "empobrecem" livros de auto-ajuda

IARA BIDERMAN
FREE-LANCE PARA A FOLHA

Para tudo nesta vida há remédio, especialmente se você for comprá-lo na livraria. Há oferta de "remédios" editoriais para qualquer circunstância da vida e todos os momentos da existência, do nascimento à morte, ou melhor, para até antes e depois de nascer e morrer. Tudo começou quando um médico escocês escreveu um manual para ensinar à classe operária como chegar ao paraíso do sucesso individual.
"Self-Help" (auto-ajuda, em inglês), o título do livro de Samuel Smiles (1812-1904), inaugurou e deu nome à literatura de auto-ajuda em 1859, mais de um século antes do chamado boom de vendas desse gênero de livro. Foi um sucesso de vendas. E, para os conceitos atuais, a obra pioneira segue o padrão dos exemplares contemporâneos.
O que mudou a partir da segunda metade do século 20 foi o leque de assuntos. De como cozinhar um arroz soltinho ao método infalível para arranjar um namorado, um emprego ou, melhor ainda, ambos (como propõe um título, no melhor estilo "pague um, leve dois"); cuidados para diabéticos ou para evitar rugas e celulite; como impedir a entrada das drogas na vida de seu filho ou as birras dele; como conviver com os sogros ou com o mal de Alzheimer; como ficar milionário ou descobrir a chave da felicidade. Não falta assunto para os livros que, gostem ou não seus autores, podem ser encaixados no gênero auto-ajuda.
Uma marca do gênero: os textos não se destinam unicamente à leitura, possuem um cunho prático, pressupondo que o leitor passará da leitura à ação. O que os diferencia são as formas de conduta sugeridas para a obtenção de um bem ou a solução de um problema, que pode ser de ordem espiritual, mundano, sexual, profissional, afetivo, familiar ou medicinal, diz o sociólogo Francisco Rüdiger, autor de "Literatura de Auto-Ajuda e Individualismo" (ed. Faurgs).
Rüdiger credita o sucesso do gênero à incapacidade do homem moderno de enfrentar seu tempo com as coordenadas da modernidade -o pensamento racional e científico. Em épocas anteriores da história ocidental, os livros religiosos e os tratados morais da antigüidade grega bastavam para explicar o mundo e estabelecer formas de conduta.
Agora, num mundo cada vez mais complexo e cruel, as explicações racionais também não dão conta da vida cotidiana, diz o sociólogo Emir Sader, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
Para ele, os livros de auto-ajuda exploram essas condições cruéis e desacreditam as soluções coletivas, vendendo ao leitor normas individualistas de sobrevivência na selva. Nada muito diferente do que o escocês propunha aos trabalhadores no tempo da Revolução Industrial.
Sader não faz concessões a esse nicho, para ele abastecido por compêndios de receitas simplistas e filosofia barata.
Com a preocupação legítima de vender, as editoras dão aos livros de áreas tão díspares como administração, moda e esoterismo uma embalagem parecida, com títulos que sugerem uma resposta utilitária e simples para os problemas. Marino Lobello, vice-presidente de comunicação da Câmara Brasileira do Livro, afirma: título não é conteúdo, é feito para vender, ter apelo de consumo. Portanto um alerta ao consumidor na hora da compra do livro: o título não dá indicações, necessariamente, do conteúdo e da qualidade.
O embaralhamento aumenta diante da prateleira da loja, onde se encontram, lado a lado, "dicas" para ser feliz e informações sérias de medicina para leigos. A boa notícia é que existem recursos que ajudam a separar o joio do trigo, o livro que ajuda do que engana.
A apresentação de uma fórmula única e definitiva para um problema, especialmente na área da psicologia e do comportamento, é um indicador de que o leitor corre riscos. "O engano vem da ilusão das receitas prontas, abrindo-se mão dos recursos, da criatividade e da individualidade de cada um", afirma a psicanalista Giselle Câmara Groeninga, da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.
É um paradoxo do gênero: ao mesmo tempo que propõe um caminho pela hipervalorização individual ("O que Importa Sou Eu!", diz um título à venda), produz um achatamento das individualidades em fórmulas massificadas, como se todos tivessem as mesmas condições de vida e se defrontassem com as mesmas situações cotidianas.
"Livro bom é aquele que faz a pessoa perguntar sobre a vida, não o que traz a resposta pronta", diz a psicóloga e colunista da Folha Rosely Sayão. São os livros que evidenciam os problemas, alertam para a sua gravidade e para o fato de que não existem soluções simplistas, mantendo a vida intelectual na tensão e no dinamismo necessários para a existência neste mundo, diz Rüdiger.
Mas nem tudo é modelo "tamanho único" nesse balaio de livros voltados a ajudar o homem a enfrentar seus problemas cotidianos e existenciais. A psicanalista Groeninga, embora rejeite o rótulo de auto-ajuda ("é falsa a idéia de auto-ajuda emocional, de que se pode prescindir do outro"), acha que alguns livros podem auxiliar, "mostrando muito mais um caminho dentre os possíveis do que propriamente um fim".
Lobello pondera que o fato de a pessoa ser seduzida por um livro e ter a chance de ler já é uma ajuda positiva. "Faço parte de uma corrente mais generosa, que diz que precisamos formar leitores, propagar o hábito da leitura, antes de patrulhar os conteúdos", diz.

Força no trabalho
O fim do emprego clássico e a dificuldade de encontrar espaço no mercado de trabalho são bastante explorados pelo mercado da auto-ajuda. E também nos livros dessa temática há muita bobagem em meio a coisas boas. Para distingui-las, José Carlos Durand, do Centro de Estudos da Cultura e do Consumo da Fundação Getúlio Vargas, diz que é preciso abrir o livro e ler. Procurar as referências do autor (formação acadêmica, trabalhos), checar no índice se a seqüência de capítulos cobre o que se procura na obra e ler as dez primeiras páginas. "Essas dez páginas são decisivas para sentir se o que está escrito faz sentido", diz. Outro bom expediente: observar se o texto abusa de superlativos e adjetivos como infalível, definitivo ou poderoso. "São técnicas de convencimento primárias para vender qualquer coisa aos crédulos", afirma Durand.

Na saúde
Tal qual o trabalho (ou a falta dele) anda o estresse. E assunto é tratado sob as mais diversas abordagens: de científica a declaradamente mística. Na área de saúde mental, por exemplo, José Roberto Leite, do Departamento de Medicina Comportamental da Unifesp, acha imprescindível que o leitor recorra às abordagens apoiadas em métodos comprovados pela ciência. Assim, verificar as credenciais do autor é o primeiro passo. "Se for alguém ligado a uma universidade com reconhecimento científico, é quase certo que isso vai estar escrito na contracapa ou orelha do livro", afirma. Os títulos que propõem estratégias para lidar com distúrbios de humor, ansiedade e estresse podem ajudar de fato se apoiados em fundamentos científicos -procure as fontes (pesquisas, estudos) em que se basearam, diz o médico. E isso não exclui toda técnica alternativa. A da meditação, por exemplo, é objeto de pesquisa. "Também é preciso dar uma lida para ver se é possível reproduzir as estratégias propostas. Uma boa parcela dos livros não ajuda por um motivo simples: identificam o problema, falam uma série de coisas que têm de ser feitas, mas não ensinam como fazer", diz Leite. É um bom começo, mas não um critério infalível nem definitivo, para usar dois adjetivos caros ao gênero. Na área de medicina, os livros de auto-ajuda são bem-vindos, segundo Antonio Carlos Lopes, presidente da Sociedade Brasileira de Clínica Médica, desde que elaborados, supervisionados e revisados por profissionais competentes, ou seja, médicos especializados na área em questão. "Um certo conhecimento "popular" da medicina é extremamente importante, não está fora do circuito de cultura geral. Devia ser ensinado desde a escola do ensino fundamental", acredita Lopes. O clínico-geral acha que um livro que traz informações em linguagem acessível sobre como conviver com uma doença, os cuidados necessários, os hábitos de vida recomendados e como atenuar o mal é uma contribuição para a comunidade -pacientes e quem convive com eles. A dificuldade de transformar a linguagem científica em um texto para leigos é relativa. Segundo Lopes, todo médico tem de saber como explicar ao doente o que está acontecendo de forma clara. Então deve ser capaz de revisar o texto do livro para corrigir erros e evitar mal-entendidos. "O problema são os livros que começam a descrever o quadro clínico, os sintomas científicos e dão respostas únicas aos sintomas. Nesse caso, podem induzir o indivíduo a se autodiagnosticar", diz Lopes. No quesito dietas de emagrecimento, o problema é basicamente o mesmo: a massificação. "É preciso respeitar os hábitos, as características físicas de cada um para que os resultados se mantenham a longo prazo", diz o endocrinologista Antônio Roberto Chacra, da Unifesp. Para ele, as diferentes dietas da moda são apenas novas roupagens para o mesmo princípio: comer menos e restringir carboidratos. "Se a pessoa seguir, acaba perdendo peso momentaneamente. O difícil é perder e manter", diz ele. O melhor é gastar o dinheiro em livros de nutrição voltados para emagrecimento, que trazem informações sobre os alimentos, tabelas de calorias e substituições e focam a reeducação alimentar. Informação de qualidade é sempre útil. E ajuda.

Religião e esoterismo
Para efeito de classificação, os livros de religião são considerados área distinta da auto-ajuda, mas os títulos das duas áreas estão sempre esbarrando um no outro. Segundo Rüdiger, os livros de auto-ajuda apresentam uma suposta fórmula para o homem moderno combinar elementos que estão em contradição, como ciência e religião, misticismo e realismo. E, nesse sentido, as tradições orientais vieram a calhar, porque partem de uma visão de mundo não-cartesiana (baseada na razão). Nas prateleiras, há de tudo, de clássicos da literatura zen ou taoísta a livros que misturam elementos superficiais de várias tradições, num pacote de conforto espiritual fácil e rápido.
"É preciso tomar cuidado quando o livro parece dar tudo de maneira muito fácil. Valores de uma cultura distante não vêm por osmose", diz Emídio Moufarrige, coordenador editorial da Associação Palas Athena.


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