São Paulo, quinta-feira, 06 de maio de 2004
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outras idéias

Teria o bicho-da-seda sido poupado das aflições que acompanham as dores das mudanças? Qual das fases seria a mais confortável? O interior do casulo ou a liberdade de voar?

mario sergio cortella

Fio da meada

Uma das metamorfoses mais impressionantes do mundo vivo é aquela que ocorre com o bicho-da-seda, que passa por cinco mudanças radicais. De larva a lagarta, sofre quatro transformações durante aproximadamente 31 dias, período em que se alimenta de folhas de amoreira; de lagarta a mariposa, um tempo adicional de três semanas. O mais curioso é que o bicho, ao final do período inicial de um mês, começa a fiar a seda -que tanto seduziu os humanos-, formando, aos poucos, o casulo no qual se encerrará, preparando a fase final. Esse casulo, espécie de "útero" acolhedor, compõe-se de quase um quilômetro de fios (embora sejam necessários 6.000 casulos para resultar em um só quilo de seda). Depois de 21 dias, rompido o invólucro aconchegante, é só voar...
Teria o singelo bicho-da-seda, autor de delicada obra, sido poupado das aflições que acompanham as dores das mudanças? Qual das fases seria a mais confortável? O interior do casulo ou a liberdade obrigatória de voar?
E nós? Tem sido cada vez mais comum pessoas procurarem animar os de semblante preocupado, proclamando a necessidade de a alegria voltar aos olhos e ao coração do outro. Para tanto, a frase usada com a finalidade de afastar as aflições do dia-a-dia é amiúde "Desperte a criança que está em você". São imperativos. "Desperte-a! Deixe sair a criança!"
Mas dormita essa criança ainda na gente? Tal qual crisálida, está lá abrigada? Repousa em sutil torpor? Precisamos encontrá-la ou devemos esquecê-la? Isso dói? Na bela música "O Filho que Eu Quero Ter", canta Toquinho uma triste estrofe: "Dorme, menino levado, / dorme, que a vida já vem; / teu pai está muito cansado / de tanta dor que ele tem".
Nostalgia uterina? Regresso casular? Recusa à tormenta?
Vez ou outra, melhor virar bicho-da-seda e começar a tecer outro enredo. Guilherme de Almeida fez um pouco isso. Participante da Semana de Arte Moderna de São Paulo, em 1922, membro destacado da Academia Brasileira de Letras, homenageado como Príncipe dos Poetas Brasileiros, foi atrás da simplicidade meio chinesa e, na sua "Poesia Vária", sapecou uma delícia plena de infância e nada infantil: "Um gosto de amora / comida com sol. A vida / chamava-se: Agora".
Outro poeta, Emílio Moura, nascido no primeiro ano do século 20 na cidade mineira com sugestivo nome de Dores do Indaiá, partilhou da eventual irreverência de Guilherme de Almeida, sendo o responsável em 1925 por "A Revista", a primeira das publicações modernistas de Minas Gerais. Ele é autor de duas obras com títulos para serem admirados com um pouco de inveja: "Canto da Hora Amarga" (1936) e "O Instante e o Eterno" (1953). Mas o gosto maior estava na toada que saiu na coletânea "Itinerário Poético", publicada em 1969 (ano em que morreu o colega paulista e dois anos antes de sua própria morte): "Minha infância está presente. / É como se fora alguém, / Tudo o que dói nesta noite, / eu sei, é dela que vem".
Quem, ao ouvir essa toada e sendo um apreciador de poesia de profunda qualidade, não se recorda dos lacerantes versos de Fernando Pessoa/Álvaro de Campos no poema que começa com aflito brado "Grandes são os desertos, e tudo é deserto". Um pouco mais adiante, o desespero de existir vem à tona com a súplica "Volta amanhã, realidade! / Basta por hoje, gentes! / Adia-te, presente absoluto! / Mais vale não ser que ser assim".
A densidade desses gritos -e muitas vezes deles mudamente compartimos- já bastaria para provocar grande incômodo. No entanto o que Fernando Pessoa escreve a seguir, como se ainda faltasse algo mais temível, mergulha a reflexão na vida de gentes variadas: "Comprem chocolates à criança a quem sucedi por erro, / E tirem a tabuleta porque amanhã é infinito".
A criança a quem sucedi por erro! Para muitos, terrível constatação, apavorante consulta à história pessoal, desoladora resignação. Porém sempre é tempo de achar o fio da meada; ele mesmo nos advertiu: amanhã é infinito...


MARIO SERGIO CORTELLA, filósofo, professor da PUC-SP e autor de "A Escola e o Conhecimento: Fundamentos Epistemológicos" (ed. Cortez/IPF), entre outros, escreve aqui uma vez por mês


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