São Paulo, quinta-feira, 06 de dezembro de 2007
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Outras idéias

Michael Kepp

A CIA e eu

Durante meus 25 anos aqui, alguns brasileiros reagiram à minha nacionalidade americana perguntando se eu trabalhava para a CIA. Respondia a essa provocação brincalhona dizendo: "Isso é confidencial!" ou "Não, mas já trabalhei para a C&A".
A provocação não me ofende porque simpatizo com o antiamericanismo que expressa jocosamente. Afinal, a CIA ajudou a derrubar vários líderes eleitos, de João Goulart a Salvador Allende, e distorceu dados usados para justificar a invasão do Iraque.
Os brasileiros quebram o gelo com banalidades antes de perguntar sobre a CIA. Por quê? Pelo mesmo motivo que não perguntam a um desconhecido sua profissão, algo mais pessoal, até conhecê-lo melhor.
Taxistas daqui demonstram a mesma delicadeza, perguntando minha profissão depois de um longo bate-papo. Uma dessas conversas começou num sinal fechado, quando o taxista notou uma moça atraente no carro ao lado e perguntou: "Você comeria ela?"
Achei a pergunta vulgar e disse que era casado. "E daí?", disse. "Comeria ela?" Para acabar com o assunto, falei: "Comeria". "Com certeza!", ele disse. Mas ele esperou até o fim da corrida para dizer: "Me desculpe, mas o que você faz na vida?". Quer dizer, para ele, a pergunta sobre minha profissão foi mais íntima do que aquela sobre quem me atrai.
Homens de outras classes confirmam essa impressão. Em festas, é mais fácil fitarem uma moça faceira e dizerem "gostosa, hein?" (que não tem a vulgaridade de um "você comeria ela?") do que perguntarem minha profissão.
Nos EUA, é o contrário. Em festas por lá, a primeira pergunta mais comum é: "Em que você trabalha?" Por quê? Nos EUA, você é definido principalmente pelo status que sua profissão confere. Raramente ouvem-se comentários como "gostosa, hein?", porque são considerados sexistas e politicamente incorretos.
Na França, onde vivi, e na Itália, não existe esse tabu. Recém-conhecidos comparam suas preferências femininas e até suas conquistas, uma característica que define e dá status. Afinal, os franceses se consideram sofisticados sexualmente (são os inventores do termo "ménage à trois") e chamam os americanos de puritanos.
Os homens brasileiros também se orgulham de suas conquistas -sejam coroas que posam com suas mulheres-troféus em "Caras" ou taxistas que se gabam de passageiras que levaram para o motel. E a infidelidade do macho é tão comum aqui que esposas enganadas não sofrem o estigma social que marca maridos traídos. Há um insulto que ofenda tanto a mulher traída quanto "corno" ofende ao homem?
Hoje em dia, estou preparado para homens que querem comparar suas preferências femininas ou expressar seu antiamericanismo. Mês passado, em uma festa, um brincalhão disse numa roda de convidados que me apresentava como correspondente internacional para encobrir o que eu realmente era: agente secreto.
Quando todos se viraram para mim, disse: "Que ridículo! Sou jornalista há muitos anos". "Desde quando?", perguntou um convidado. "Desde que saí da CIA", respondi.


MICHAEL KEPP , jornalista norte-americano radicado há 25 anos no Brasil, é autor do livro de crônicas "Sonhando com Sotaque - Confissões e Desabafos de um Gringo Brasileiro" (ed. Record)

www.michaelkepp.com.br

[...] EM FESTAS, É MAIS FÁCIL FITAREM UMA MOÇA FACEIRA E DIZEREM "GOSTOSA, HEIN?" DO QUE PERGUNTAREM MINHA PROFISSÃO



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