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Outras idéias - Dulce Critelli
O belo e o feminino
Nada do que somos
vem de dentro de
nós mesmos. Nem
nosso destino está
simplesmente escrito nas estrelas. O indivíduo único que
cada um de nós é vai se construindo ao longo de nossa passagem por este mundo, à medida em que absorvemos, processamos e devolvemos ao mundo
as coisas que ele nos oferece.
Vivemos em constante metabolização de tudo aquilo com
que entramos em contato: o ar,
a água, os odores, os alimentos
e as paisagens, além dos atos e
das palavras daqueles com
quem convivemos, seus valores, anseios e sentimentos.
Nossas reações, nossas sensações e nossos sentimentos são
expressões de tal metabolização.
A morte por anorexia da jovem modelo a que a imprensa,
dias recentes, deu bastante destaque, é um acontecimento
exemplar. E a tentativa dos empresários das agências de resolver o problema exigindo das garotas atestados médicos, um
contra-senso, porque sugere
que a anorexia é um problema
particular delas. As próprias jovens -e também os empresários, o mercado e a sociedade-
compartilham igual culpa e responsabilidade.
A anorexia não pode ser vista
como uma doença de origem
individual. Ela é, hoje, um padrão estético e corporal vigoroso que se impõe e alicia. É próprio do mundo em que vivemos, é do nosso ambiente cultural de onde saltam, sedutoras
e inquestionáveis, as possibilidades de ser, os desafios e os
problemas que, aparentemente, acreditamos serem nossas
questões mais particulares,
mas que não são mais do que
padrões gerais e tirânicos.
Quando as jovens mulheres
se tornam anoréxicas para corresponder ao modelo corporal
vigente, elas já responderam
afirmativamente à convocação
do nosso mundo. Metabolizaram esse padrão, convertendo-o no seu próprio desejo e meta.
A ponto de preferirem morrer a
romper com ele.
Anorexia é quase um arquétipo corporal moderno. Nele se
aliam concepções do que é o belo e do que é o feminino. A beleza parece conviver com a deformação e a dor. E o feminino, na
figura da mulher, sugere que a
ela pode se infligir dor e deformação em nome da realização
desse mesmo ideal de beleza.
Não eram as mulheres que tinham seus pés quebrados na
antiga China? E ainda hoje têm
seus pescoços esticados, como
algumas mulheres da Ásia? E
para quem são os saltos, bicos
finos, plásticas, depilações?
Dentre todas essas mutilações, a anorexia é, sem dúvida, a
mais cruel e a mais desumana,
porque, em nome do corpo
ideal, exige a falência do próprio corpo. Infelizmente, é
também a expressão de um
princípio contemporâneo: para
que serve a vida, afinal?
DULCE CRITELLI , terapeuta existencial e
professora de filosofia da PUC-SP, é autora
de "Educação e Dominação Cultural" e
"Analítica de Sentido" e coordenadora do
Existentia -Centro de Orientação e Estudos da
Condição Humana
dulcecritelli@existentia.com.br
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