São Paulo, quinta-feira, 07 de dezembro de 2006
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Outras idéias - Dulce Critelli

O belo e o feminino

Nada do que somos vem de dentro de nós mesmos. Nem nosso destino está simplesmente escrito nas estrelas. O indivíduo único que cada um de nós é vai se construindo ao longo de nossa passagem por este mundo, à medida em que absorvemos, processamos e devolvemos ao mundo as coisas que ele nos oferece.
Vivemos em constante metabolização de tudo aquilo com que entramos em contato: o ar, a água, os odores, os alimentos e as paisagens, além dos atos e das palavras daqueles com quem convivemos, seus valores, anseios e sentimentos. Nossas reações, nossas sensações e nossos sentimentos são expressões de tal metabolização.
A morte por anorexia da jovem modelo a que a imprensa, dias recentes, deu bastante destaque, é um acontecimento exemplar. E a tentativa dos empresários das agências de resolver o problema exigindo das garotas atestados médicos, um contra-senso, porque sugere que a anorexia é um problema particular delas. As próprias jovens -e também os empresários, o mercado e a sociedade- compartilham igual culpa e responsabilidade.
A anorexia não pode ser vista como uma doença de origem individual. Ela é, hoje, um padrão estético e corporal vigoroso que se impõe e alicia. É próprio do mundo em que vivemos, é do nosso ambiente cultural de onde saltam, sedutoras e inquestionáveis, as possibilidades de ser, os desafios e os problemas que, aparentemente, acreditamos serem nossas questões mais particulares, mas que não são mais do que padrões gerais e tirânicos.
Quando as jovens mulheres se tornam anoréxicas para corresponder ao modelo corporal vigente, elas já responderam afirmativamente à convocação do nosso mundo. Metabolizaram esse padrão, convertendo-o no seu próprio desejo e meta.
A ponto de preferirem morrer a romper com ele. Anorexia é quase um arquétipo corporal moderno. Nele se aliam concepções do que é o belo e do que é o feminino. A beleza parece conviver com a deformação e a dor. E o feminino, na figura da mulher, sugere que a ela pode se infligir dor e deformação em nome da realização desse mesmo ideal de beleza.
Não eram as mulheres que tinham seus pés quebrados na antiga China? E ainda hoje têm seus pescoços esticados, como algumas mulheres da Ásia? E para quem são os saltos, bicos finos, plásticas, depilações? Dentre todas essas mutilações, a anorexia é, sem dúvida, a mais cruel e a mais desumana, porque, em nome do corpo ideal, exige a falência do próprio corpo. Infelizmente, é também a expressão de um princípio contemporâneo: para que serve a vida, afinal?


DULCE CRITELLI , terapeuta existencial e professora de filosofia da PUC-SP, é autora de "Educação e Dominação Cultural" e "Analítica de Sentido" e coordenadora do Existentia -Centro de Orientação e Estudos da Condição Humana

dulcecritelli@existentia.com.br

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