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Neurociência/ SUZANA HERCULANO-HOUZEL
Brincadeiras para o cérebro
Morto-vivo, batatinha-frita, seu
mestre mandou, lenço atrás.
À primeira vista, essas são
brincadeiras bobas que servem apenas para divertir as
crianças e fazê-las correr.
Mas fazem muito mais: as
brincadeiras tradicionais da
infância são um excelente
exercício para o córtex pré-frontal em formação.
O córtex pré-frontal é
aquela parte do cérebro que
organiza nossas ações, faz
planos, elabora estratégias e,
sobretudo, diz não às respostas impulsivas do cérebro.
Crianças pequenas ainda
não fazem nada disso muito
bem, com seu pré-frontal
imaturo, de modo que qualquer "aula" de organização é
bem-vinda, a começar pelo
be-a-bá: escolher a resposta
certa para cada estímulo. Entram em cena as brincadeiras mais simples, como morto-vivo e lenço atrás, onde o
cérebro aprende que deve
responder a "Morto!" fazendo o corpo se sentar, a "Vivo!" colocando o corpo de
novo em pé, e a um objeto
atrás das costas fazendo a
criança correr atrás da outra.
Enquanto aprende, o cérebro de quebra se diverte com
seus erros, o que garante
muitas horas de brincadeira
e aprendizado.
Se escolher a resposta certa é importante, não responder quando não se deve também é fundamental, mas já
exige um nível de elaboração
maior do pré-frontal. Meu filho de 3 anos brinca de morto-vivo sem o menor problema, mas o cérebro dele ainda
apanha nas brincadeiras de
"nível 2", que exigem que
não se faça alguma coisa ao
ouvir um comando. Correr
na batatinha-frita é com ele
mesmo, mas o molequinho é
incapaz de parar ao som de
"três!" para virar estátua. No
esconde-esconde, então,
basta perguntar "Cadê você?" que ele se entrega, lá do
seu esconderijo: "Tô aqui!".
Com tempo, prática e muita
brincadeira, o córtex pré-frontal vai aprendendo que,
às vezes, a ação correta é a
não-ação.
O passo seguinte é elaborar estratégias que juntam
ação e não-ação.
Quando morto-vivo e batatinha-frita se tornam triviais, brincadeiras como pique-bandeira e depois os esportes organizados dão ao
cérebro o desafio de monitorar várias pessoas ao mesmo
tempo, decidir quando é o
momento de correr e ainda
driblar o adversário.
E quando você pensa que
acabou, a brincadeira apenas
muda. O córtex pré-frontal
leva cerca de 30 anos para
amadurecer, e brincamos esse tempo todo, de bola, cartas, RPG e jogos de sociedade
ou, um dia, do jogo adulto
por excelência: pôquer. Haja
habilidade pré-frontal para
ler as emoções dos outros e,
desafio dos desafios, blefar...
SUZANA HERCULANO-HOUZEL, neurocientista, é professora da UFRJ e autora de "Sexo, Drogas, Rock'n'Roll & Chocolate" e de "O
Cérebro Nosso de Cada Dia" (ed. Vieira &
Lent)
suzanahh@folhasp.com.br
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