São Paulo, quinta-feira, 07 de dezembro de 2006
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Neurociência/ SUZANA HERCULANO-HOUZEL

Brincadeiras para o cérebro

Morto-vivo, batatinha-frita, seu mestre mandou, lenço atrás. À primeira vista, essas são brincadeiras bobas que servem apenas para divertir as crianças e fazê-las correr. Mas fazem muito mais: as brincadeiras tradicionais da infância são um excelente exercício para o córtex pré-frontal em formação.
O córtex pré-frontal é aquela parte do cérebro que organiza nossas ações, faz planos, elabora estratégias e, sobretudo, diz não às respostas impulsivas do cérebro.
Crianças pequenas ainda não fazem nada disso muito bem, com seu pré-frontal imaturo, de modo que qualquer "aula" de organização é bem-vinda, a começar pelo be-a-bá: escolher a resposta certa para cada estímulo. Entram em cena as brincadeiras mais simples, como morto-vivo e lenço atrás, onde o cérebro aprende que deve responder a "Morto!" fazendo o corpo se sentar, a "Vivo!" colocando o corpo de novo em pé, e a um objeto atrás das costas fazendo a criança correr atrás da outra.
Enquanto aprende, o cérebro de quebra se diverte com seus erros, o que garante muitas horas de brincadeira e aprendizado. Se escolher a resposta certa é importante, não responder quando não se deve também é fundamental, mas já exige um nível de elaboração maior do pré-frontal. Meu filho de 3 anos brinca de morto-vivo sem o menor problema, mas o cérebro dele ainda apanha nas brincadeiras de "nível 2", que exigem que não se faça alguma coisa ao ouvir um comando. Correr na batatinha-frita é com ele mesmo, mas o molequinho é incapaz de parar ao som de "três!" para virar estátua. No esconde-esconde, então, basta perguntar "Cadê você?" que ele se entrega, lá do seu esconderijo: "Tô aqui!". Com tempo, prática e muita brincadeira, o córtex pré-frontal vai aprendendo que, às vezes, a ação correta é a não-ação.
O passo seguinte é elaborar estratégias que juntam ação e não-ação. Quando morto-vivo e batatinha-frita se tornam triviais, brincadeiras como pique-bandeira e depois os esportes organizados dão ao cérebro o desafio de monitorar várias pessoas ao mesmo tempo, decidir quando é o momento de correr e ainda driblar o adversário.
E quando você pensa que acabou, a brincadeira apenas muda. O córtex pré-frontal leva cerca de 30 anos para amadurecer, e brincamos esse tempo todo, de bola, cartas, RPG e jogos de sociedade ou, um dia, do jogo adulto por excelência: pôquer. Haja habilidade pré-frontal para ler as emoções dos outros e, desafio dos desafios, blefar...


SUZANA HERCULANO-HOUZEL, neurocientista, é professora da UFRJ e autora de "Sexo, Drogas, Rock'n'Roll & Chocolate" e de "O Cérebro Nosso de Cada Dia" (ed. Vieira & Lent)

suzanahh@folhasp.com.br


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