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Desejos do corpo são dominados pelo jejum
Reprodução
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Estátua de Buda, com veias e vértebras bem aparentes; ele seguiu a prática da época, de mortificação
corporal, que incluía o jejum, até fundar o budismo |
Prática é comum em diferentes religiões e a meta é o crescimento espiritual; para emagrecer, fechar a boca é um "pecado"
BELL KRANZ
EDITORA DO EQUILÍBRIO
"Eba! Amanhã tem bacalhau." Essa frase animada é um forte indício de que o sentido do jejum de carne, para o católico em questão, irá para o ralo nesta Sexta-Feira Santa. Na casa da sogra, da mama ou
no restaurante da esquina (os cardápios se "convertem" nesta época), ele
muito provavelmente vai se refestelar -ou se entupir- da iguaria preparada com esmero para compensar a falta da carne. E a idéia de sacrifício, de renúncia à abundância ou de penitência
do jejum religioso simplesmente desaparece. Por fim, após o santo almoço, quem dispõe de um tempinho dorme um bocadinho -afinal
a carne pede.
E como pede! Está sempre solicitando e de forma inexorável -por
fome, sede, sono, dor, frio. As culturas com base na filosofia grega, como as ocidentais, apoiadas no pensamento platônico, situam o corpo
como prisão da alma, diz o professor do Departamento de Teologia
da PUC-SP e colunista da Folha Mario Sergio Cortella. O corpo é entendido como a sede da necessidade, o
lugar da privação -ele dá cansaço,
adoece.
Dá prazer também, como o sexual.
Mas é passageiro, a necessidade logo
volta à tona. Daí entra a função do
jejum em boa parte das religiões, como uma forma de saciar esse corpo
insaciável.
Em entrevistas com monge budista, rabino, xeque e cardeal, o jejum
aparece como técnica para "tirar o
corpo da frente" e, assim, alcançar
um estado de desapego material,
aproximar-se da divindade ou atingir a prática da solidariedade com
os carentes, segundo a religião. O
"faminto" também pode ser agraciado com bem-estar, com virtudes
como humildade, torna-se mais
alerta, com os sentidos mais vívidos, enxergando melhor o entorno
e o interior de si mesmo.
Comer, assim como dormir, diz o
rabino Nilton Bonder, da Congregação Judaica do Brasil, é uma função que consome um tempo muito
grande na vida da pessoa e também
da sua atenção -desde a obtenção
do alimento até a sua preparação e
o ato de comer. "Quando você tira
essa função do caminho, percebe:
"Uau, alguma coisa é mais importante do que a comida'", diz o rabino. O jejum, portanto, libera a pessoa para ter um dia todo devotado
à prática espiritual.
Entre os muçulmanos, essa prática é das mais rígidas e longas. E
sentir a fome na pele, pelo menos
nesse caso, faz a pessoa se mexer. É
fácil ver os necessitados na rua tendo em casa a geladeira cheia, você
pensa neles por cinco minutos e
pronto, afirma o xeque Jihad Hassan, vice-presidente da Assembléia
Mundial da Juventude Islâmica.
A questão é jejuar o mês todo, e a
pessoa passar da retórica para a
prática, envolvendo-se com os carentes -ou, digamos, liberando a
geladeira. "Nada melhor do que a
necessidade para fazer o coração
frio se aquecer e o coração duro
amolecer", resume Hassan.
Essa necessidade promovida pelo
jejum religioso "é uma sabedoria
dos antigos para obter um certo
domínio sobre o corpo, depurar o
corpo para o espírito funcionar melhor", diz Antonio José Valverde,
chefe do Departamento de Filosofia
da PUC-São Paulo.
E a pessoa se sente mais feliz quando domina os seus desejos, porque
fica mais forte espiritualmente, diz o
cardeal José Freire Falcão, arcebispo
emérito de Brasília. Ele recomenda o
jejum sobretudo para as pessoas do
mundo moderno, "envolvidas pelas
"nutrições terrestres", alimentadas
por desejos desordenados". A saber:
o desejo desordenado de poder, em
que se vai atrás dele com o sacrifício da própria dignidade ou esmagando
o direito do outro, o de possuir sempre mais e o prazer desordenado.
Barriga vazia também deixa a pessoa humilde. "Com as forças enfraquecidas, você tem uma visão mais
humilde de si mesmo; o ego forte
tem dificuldade de aceitar suas fraquezas", diz Bonder. Porém há uma
armadilha espiritual no jejum.
"Tudo que você faz de forma disciplinar para produzir mais humildade pode provocar o contrário." É o
caso do sujeito se achar tão especial
pelo que está realizando que acaba
orgulhoso, em vez de humilde.
O fato é que "o negócio é bravo",
diz o professor do Departamento de
Teologia da PUC-SP Fernando Altemeyer. "Nunca sofri tanto como nas
12 primeiras horas." Seu jejum foi
político (há 20 anos, em solidariedade a um ato realizado por um grupo
de irlandeses), com privação total de
alimento durante um dia e meio.
Passadas as 12 horas, "você entra em
um estado de equilíbrio, torna-se senhor daquele ato, não é mais o desejo que te comanda; foi impressionante para mim".
Além de espiritual, a meta da prática é uma purificação física, se bem
que ambas se mesclam. O ex-professor de história das religiões da USP e
monge budista do templo Higashi
Honganji, Ricardo Mario Gonçalves, durante a sua iniciação, fez cerca de cem dias de abstinência, comendo pouquíssimo.
"O jejum deixa os sentidos mais
apurados, você sente o corpo mais
saudável, um pouco fraco, mas não
está entorpecido por gordura e peso
extra", diz ele. A monja Coen, zen-budista, que jejuou em templos no
Japão, apesar de em sua tradição
não existir a obrigação da prática,
conta que a pessoa "escuta melhor,
vê melhor, e o olfato e o tato ficam
mais vívidos".
No Brasil, praticamente todos os
povos indígenas seguem algum tipo
de abstenção alimentar em momentos críticos, diz o antropólogo
Eduardo Viveiros de Castro, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Durante a gravidez, o casal segue
restrições alimentares; quando a
criança nasce, a mãe faz um jejum,
que é presente também em certos
momentos da adolescência, no processo de formação do pajé ou em benefício do parente próximo que está
doente -para eles, os corpos estão
em comunicação; se o filho ingerir
um alimento proibido para o pai
doente, a saúde do progenitor será
prejudicada. As razões do jejum? Físicas (terapêuticas) e metafísicas.
Também na umbanda e no candomblé, antes do recebimento dos
orixás, o jejum é usado como regra
de purificação. "Uma forma de se
"limpar", de se distanciar do profano,
do que é impuro e de se aproximar
do sagrado", explica a antropóloga
Fatima Tavares, do Departamento
de Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora.
E para quem jejum lembra mais
um outro ritual, aquele praticado,
religiosamente, todos os dias nas
academias de ginástica, os médicos
avisam: ele não garante um corpinho dos deuses. Pode até emagrecer
no início, mas a médio prazo perde
o efeito. Pesquisas feitas com ursos
mostram que, depois da hibernação
de meses, durante o inverno, os bichos saem quase tão gordos como
quando entraram.
"Após vários jejuns, o organismo
se acostuma a não queimar caloria,
guardando reservas para sobreviver", diz o psiquiatra Arthur Kaufman, coordenador do Prato (Projeto de Atendimento ao Obeso, do
HC). Aliás, é muito comum entre a
turma mais pesada fazer jejum de
dia e, à noite, "cair de boca" na comida. Leia, na página 8, o que acontece com o corpo em jejum.
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