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outras idéias
A família demorava a começar a comer, pois ficaram os adultos conversando em demasia sobre a situação política nacional e os rumores que corriam soltos
Alto lá!
mario sergio cortella
Uma das memórias mais recorrentes que carrego pela vida afora é a do
grande espanto que tive na Semana Santa de 1964. Vivia eu ainda na
minha cidade natal, Londrina, no Estado do Paraná, e, com dez anos
de idade, estava bastante ansioso pela chegada aos três cinemas lá existentes
dos inevitáveis filmes sobre a vida e o martírio de Jesus de Nazaré (que tinham a gloriosa função de elevar o nosso fervor religioso sempre naquela semana específica). Era infalível e não havia quem resistisse: lá vinham "O
Manto Sagrado", "Os Dez Mandamentos" -que obviamente não falava de
Jesus, mas favorecia o clima- e "O Rei dos Reis" (que o cinema local mais
pobre, Cine Jóia, especialista em produções japonesas, exibia na versão de
Cecil B. de Mille, feita em 1926).
Naquele ano de 1964, voltava, em grande estilo e com imensos cartazes de
propaganda (com a clássica cena da corrida de bigas à frente de tudo), o demoradíssimo épico "Ben-Hur", com mais de três horas e meia de duração! O
filme, dirigido por Willian Wyler e com roteiro baseado no romance de Lew
Wallace, teve uma versão muda também em 1926 (bastante apreciada por cinéfilos), mas essa de 1959 foi sucesso imediato ao se tornar vencedora de 11
prêmios Oscar, inclusive o de melhor ator para Charlton Heston (o Ben-Hur) e o de ator-coadjuvante para Stephen Boyd (o Messala).
O enredo do filme era comovente, especialmente por carregar aquilo que o
maior mitólogo contemporâneo, Joseph Campbell (morto em 1987 e com
centenário comemorado em 2004), chamou de "a jornada do herói". Ao estudar mitos de variadas culturas, ele notou que, em todos eles, há similaridades: alguém especial sofre um contratempo ou dispõe-se a uma tarefa, tem
de partir voluntariamente ou não, sofre muito para realizar o que precisa e
tem uma volta triunfal.
O conteúdo do filme não foge a essa lógica, mormente quando ressalta, na
personagem principal, o valor da fibra judaica. Na Jerusalém do século 1º, Judá Ben-Hur, um aristocrata judeu, é falsamente acusado de crime contra o
poder de Roma, tendo sido traído por seu ex-amigo Messala. Condenado à
escravidão, foi vítima de intensos sofrimentos, até mesmo da privação de
água (e, em bela cena, foi salvo de terrível sede quando o próprio Jesus, que
por ali passava, lhe ofereceu corajosamente o líquido); obrigado a ser remador em uma galé destinada a combates, conseguiu sobreviver quando a nau
afundava em meio a um confronto e ainda salvou Arius, cônsul romano. A
gratidão do cônsul levou-o a adotar Ben-Hur como filho e herdeiro, tornando-o novamente rico, de modo que o herói pôde então tornar à Palestina e ir
ao encontro de sua família e do justiçamento de seu infame acusador.
Delícia pura! Paz e poder, queda seguida de injustiça e tormenta, resultando, ao final, em vitória avassaladora e incontestável do bem (sem trocadilho).
Quem, no começo da adolescência, não se encantaria com essa história? Por
isso, desobrigado das tarefas escolares, lá fui eu correndo, na Sexta-Feira
Santa, até a porta do Cine Augustus (o nome é mera coincidência) para assistir ao filme. Na ânsia de fruir o espetáculo, esqueci-me completamente de
que os cinemas não abriam naquele dia em respeito aos hegemônicos rituais
e crenças dos cristãos que guardavam silêncio, jejum e abstinência; fui novamente no sábado, mas estava lotado.
Aguardei impaciente pela chegada do Domingo de Páscoa, que, naquele
ano, caíra em um 29 de março. Quase não almocei, um pouco tolamente irritado com a família que demorava a começar a comer, pois ficaram os adultos
conversando em demasia sobre a situação política nacional e os rumores que
corriam soltos. Mal fui liberado, saí sofregamente para ver se conseguia pegar a primeira sessão vespertina; comprei o ingresso e disparei para dentro
do cinema, sem nem notar qual era a censura etária do filme. Quando entreguei rapidamente o papelinho ao porteiro do cinema (garboso em sua indumentária plena de rigidez) e entrei acelerado em direção ao saguão, ele me
segurou firmemente pelo braço e bradou: "Alto lá!", levando-me até a porta
de saída.
Na hora, não entendi o sentido exato dessa interjeição; dois dias depois, ele
ficou claro.
MARIO SERGIO CORTELLA, filósofo, professor da PUC-SP e autor de "A Escola e o Conhecimento:
Fundamentos Epistemológicos" (ed. Cortez/IPF), entre outros, escreve aqui uma vez por mês
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