São Paulo, quinta-feira, 08 de abril de 2004
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outras idéias

A família demorava a começar a comer, pois ficaram os adultos conversando em demasia sobre a situação política nacional e os rumores que corriam soltos

Alto lá!

mario sergio cortella

Uma das memórias mais recorrentes que carrego pela vida afora é a do grande espanto que tive na Semana Santa de 1964. Vivia eu ainda na minha cidade natal, Londrina, no Estado do Paraná, e, com dez anos de idade, estava bastante ansioso pela chegada aos três cinemas lá existentes dos inevitáveis filmes sobre a vida e o martírio de Jesus de Nazaré (que tinham a gloriosa função de elevar o nosso fervor religioso sempre naquela semana específica). Era infalível e não havia quem resistisse: lá vinham "O Manto Sagrado", "Os Dez Mandamentos" -que obviamente não falava de Jesus, mas favorecia o clima- e "O Rei dos Reis" (que o cinema local mais pobre, Cine Jóia, especialista em produções japonesas, exibia na versão de Cecil B. de Mille, feita em 1926).
Naquele ano de 1964, voltava, em grande estilo e com imensos cartazes de propaganda (com a clássica cena da corrida de bigas à frente de tudo), o demoradíssimo épico "Ben-Hur", com mais de três horas e meia de duração! O filme, dirigido por Willian Wyler e com roteiro baseado no romance de Lew Wallace, teve uma versão muda também em 1926 (bastante apreciada por cinéfilos), mas essa de 1959 foi sucesso imediato ao se tornar vencedora de 11 prêmios Oscar, inclusive o de melhor ator para Charlton Heston (o Ben-Hur) e o de ator-coadjuvante para Stephen Boyd (o Messala).
O enredo do filme era comovente, especialmente por carregar aquilo que o maior mitólogo contemporâneo, Joseph Campbell (morto em 1987 e com centenário comemorado em 2004), chamou de "a jornada do herói". Ao estudar mitos de variadas culturas, ele notou que, em todos eles, há similaridades: alguém especial sofre um contratempo ou dispõe-se a uma tarefa, tem de partir voluntariamente ou não, sofre muito para realizar o que precisa e tem uma volta triunfal.
O conteúdo do filme não foge a essa lógica, mormente quando ressalta, na personagem principal, o valor da fibra judaica. Na Jerusalém do século 1º, Judá Ben-Hur, um aristocrata judeu, é falsamente acusado de crime contra o poder de Roma, tendo sido traído por seu ex-amigo Messala. Condenado à escravidão, foi vítima de intensos sofrimentos, até mesmo da privação de água (e, em bela cena, foi salvo de terrível sede quando o próprio Jesus, que por ali passava, lhe ofereceu corajosamente o líquido); obrigado a ser remador em uma galé destinada a combates, conseguiu sobreviver quando a nau afundava em meio a um confronto e ainda salvou Arius, cônsul romano. A gratidão do cônsul levou-o a adotar Ben-Hur como filho e herdeiro, tornando-o novamente rico, de modo que o herói pôde então tornar à Palestina e ir ao encontro de sua família e do justiçamento de seu infame acusador.
Delícia pura! Paz e poder, queda seguida de injustiça e tormenta, resultando, ao final, em vitória avassaladora e incontestável do bem (sem trocadilho). Quem, no começo da adolescência, não se encantaria com essa história? Por isso, desobrigado das tarefas escolares, lá fui eu correndo, na Sexta-Feira Santa, até a porta do Cine Augustus (o nome é mera coincidência) para assistir ao filme. Na ânsia de fruir o espetáculo, esqueci-me completamente de que os cinemas não abriam naquele dia em respeito aos hegemônicos rituais e crenças dos cristãos que guardavam silêncio, jejum e abstinência; fui novamente no sábado, mas estava lotado.
Aguardei impaciente pela chegada do Domingo de Páscoa, que, naquele ano, caíra em um 29 de março. Quase não almocei, um pouco tolamente irritado com a família que demorava a começar a comer, pois ficaram os adultos conversando em demasia sobre a situação política nacional e os rumores que corriam soltos. Mal fui liberado, saí sofregamente para ver se conseguia pegar a primeira sessão vespertina; comprei o ingresso e disparei para dentro do cinema, sem nem notar qual era a censura etária do filme. Quando entreguei rapidamente o papelinho ao porteiro do cinema (garboso em sua indumentária plena de rigidez) e entrei acelerado em direção ao saguão, ele me segurou firmemente pelo braço e bradou: "Alto lá!", levando-me até a porta de saída.
Na hora, não entendi o sentido exato dessa interjeição; dois dias depois, ele ficou claro.


MARIO SERGIO CORTELLA, filósofo, professor da PUC-SP e autor de "A Escola e o Conhecimento: Fundamentos Epistemológicos" (ed. Cortez/IPF), entre outros, escreve aqui uma vez por mês


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