São Paulo, quinta-feira, 08 de setembro de 2005
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Outras idéias

Dulce Critelli

Conforme a ação, o resultado

Perplexos, indignados... mas nem tanto. Assim reagimos à turbulência que atinge a nação. Ela parece apenas ter confirmado o que morava no imaginário popular, o que andava na boca de todos, na raiz da nossa apatia de cidadãos, no desinteresse ou na aversão de muitos pela política.


Se pode se perder em nome de seus desejos mais imediatos, o espírito humano também tem como seu principal movimento a busca de uma maior grandeza


No âmbito da história, nada acontece por acaso, nem de repente. O que agora comparece de corpo e alma no cenário da nação tem fundamentos antigos e consolidados. Entre eles, está a idéia de que "os fins justificam os meios". Em nome do bem, o mal. Em nome da verdade , a mentira. Da liberdade, a morte. Da paz, a guerra.
Se acreditamos que os fins justificam os meios, manipular, enganar, subjugar, formar quadrilhas, denegrir a imagem alheia, delatar, chantagear, matar ou trair não são vistos como crimes nem pecados. Vale tudo, quando a intenção é boa. Mas também não se diz que "de boas intenções o inferno está cheio"?
Que os fins justificam os meios tem sido a palavra de ordem que justifica as ações terroristas, mas também as guerras legais. Foi o pensamento que levou Hitler a empreender o extermínio dos judeus (ele agia em nome do aprimoramento da raça humana!), que explicou a eliminação sangrenta das classes abastadas, dos burgueses e dos imperialistas que Stalin e Mao realizaram (eles agiam em favor de uma antecipação do fim ideal previsto para a história!), que licenciou a Santa Inquisição e ainda credencia os movimentos e regimes fundamentalistas (eles agem em nome da vontade de Deus!).
E, no varejo do cotidiano, é essa a idéia que chancela a ganância, a corrupção, os homicídios, os assaltos, os seqüestros, a violência familiar contra idosos, mulheres e crianças, além da devastação do meio ambiente...
Como imaginar que os fins pretendidos não sejam contaminados pelas ações que os realizam? As ações e os recursos -os meios- que escolhemos para conseguir o que queremos determinam sua fisionomia. Conforme a crença, a ação. E, conforme a ação, o resultado.
Nenhuma meta justifica quaisquer meios, mas o que define se um meio utilizado é bom ou mau, adequado ou não, lícito ou escuso? De onde saem os critérios para esse julgamento?
Nem toda crença é sábia. Toda verdade carrega sua não-verdade. Toda norma pode conduzir para o lado errado. E as leis podem, justamente, apenas consolidar crenças e hábitos viciados.
Ando percebendo que, se pode se perder em nome de seus desejos mais imediatos, até perversos, o espírito humano também tem como seu principal movimento a busca de uma maior grandeza.
Vivemos entre o bem e o mal. Essas duas tendências, misteriosas, provocam incontáveis discussões filosóficas, teológicas, éticas... E a decisão entre ambos, muitos a têm atribuído ao que chamam de "livre arbítrio".
"Livre arbítrio", todavia, é expressão que soa muito individualista. Parece deixar a cada homem a solução segundo sua própria consciência. Na vida particular, talvez essa decisão pessoal seja suficiente, mas, em se tratando da vida pública, em que a nossa vida conjunta está sendo afetada, a convocação é de outra natureza.
Nenhuma noção de bem ou mal pode nos salvar. Nenhum remorso, nenhuma promessa. Nenhuma crítica moral basta. Nenhuma teoria, discurso ou ideologia.
O remédio contra a política é a ação política mesma, aquela que nasce exigida pelo sonho de como queremos ser e viver, aquela que cresce em nome da liberdade, aquela que provoca o povo a retomar, em suas mãos, o que havia entregue, sem a devida vigilância, aos políticos profissionais: as conversas e os acordos públicos e democráticos a respeito do seu próprio destino.

DULCE CRITELLI , professora de filosofia da PUC-SP, é autora de "Educação e Dominação Cultural" e "Analítica de Sentido" e coordenadora do Existentia - Centro de Orientação e Estudos da Condição Humana
@ - dulcecritelli@existentia.com.br



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