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Comportamento
O resgate da história pessoal por meio de fotografias,
pesquisas ou músicas estimula o funcionamento da memória
Mais que lembranças
TATIANA DINIZ
MARCOS DÁVILA
DA REPORTAGEM LOCAL
Imagine se existisse uma pílula da memória. Apenas um simples comprimido seria
suficiente para não esquecermos nunca mais a data de aniversário do avô ou todos os
detalhes daquela viagem de verão. Pois esse milagrosa invenção já está sendo desenvolvida por cientistas da Universidade da Califórnia, que afirmaram à revista "New
Scientist" que ela poderia ser usada na recuperação de pessoas em estado de cansaço, no
tratamento de pacientes com Alzheimer e até mesmo para aumentar o desempenho de
pessoas saudáveis. Em fase de testes, a droga deve entrar no mercado em 20 anos.
O neurocientista Iván Izquierdo, pesquisador do Centro da Memória da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e autor do livro "Questões sobre Memória" (ed.
Unisinos, 128 págs., R$ 13), não está convencido de que essas novas pesquisas tragam soluções significativas para os transtornos de memória. "Os resultados em animais são ótimos,
mas os clínicos são insuficientes. São drogas
paliativas", diz.
Sobre o uso de fórmulas para aumentar a
agilidade no processo de produzir e armazenar informações em indivíduos normais, Izquierdo afirma que "a memória funciona o
tempo todo no máximo da sua capacidade
possível".
Se as soluções mágicas ainda parecem distantes, muita gente encontra formas singulares para preservar, exercitar e valorizar a memória enquanto ela está acessível -seja arquivando músicas, montando álbuns de fotografias, guardando objetos antigos ou conversando com pessoas mais velhas.
CANÇÕES AO VENTO
A cena aconteceu em 1981, no calçadão da
praia da Enseada, no Guarujá (litoral de São
Paulo). O pequeno Octavio, 6, acabara de ganhar do pai um bonequinho Playmobil pirata.
Foi quando uma ventania quase levou o pirata
de suas mãos. O vento, que, por pouco, não
rouba o brinquedo, trouxe também um presente muito especial: uma canção. O garoto
não sabia de onde vinha aquilo. "Seria coisa do
diabo?", pensou assustado. Era sua imaginação. A melodia não parava de soprar, a letra
martelava. Foi a primeira canção entre as mais
de mil já compostas pelo, agora, músico e
compositor Tatá Aeroplano, 30 -que mantém todas as melodias na memória.
Até hoje, quando evoca a composição original, o calçadão, o boneco pirata, a ventania e o
sentimento de estar fazendo algo proibido retornam com vivacidade à sua memória. Para
Izquierdo, todos os fatos de teor emocional
forte são recordados com mais precisão. "A
emoção libera substâncias como a noradrenalina e a dopamina. Geralmente, nos lembramos desses momentos, em que ocorrem essas
liberações, em detalhes", afirma.
Para manter tantas canções na mente, Tatá
usa outro recurso indispensável, segundo Izquierdo, para fixar a memória: repetição. "Às
vezes toco uma música nova por duas horas
seguidas", diz Tatá. Além disso, ele já tem mais
de 400 canções encadernadas num livro.
Quando não há tempo para o processo de
memorização, Tatá recorre ao uso de um gravador de fita cassete, inseparável, para registrar as novas canções -que continuam surgindo ao vento, "como mágica". São mais de
150 fitas guardadas numa caixa de papelão.
Mas aí, a memória de Tatá não resiste: "É preciso decupar as fitas para extrair as canções".
MEMÓRIA ARTIFICIAL
Segundo o psiquiatra Orestes Forlenza, do
Laboratório de Neurociências do Instituto de
Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP, as
facilidades eletrônicas nos fazem pular uma
etapa no armazenamento das informações.
"Acontece o tempo todo. Tenho um paciente que esqueceu o telefone da mulher. Ele pôs
na memória do celular. Para chamá-la, bastava apertar um botão", diz Forlenza.
Ele explica que, diferentemente do cérebro
humano, a memória do computador vai ficando cada vez mais rápida e com uma capacidade maior de armazenamento. "O nosso cérebro tem uma capacidade funcional limitada.
Impõe-se que os jovens processem um número muito grande de informações", afirma.
É claro que uma série de recursos tecnológicos permite que uma pessoa manuseie um volume de dados muito maior, sem usar necessariamente a própria memória. Outra discussão contemporânea levantada pelo psiquiatra
diz respeito à educação infantil. Alunos de escola devem fazer os trabalhos de forma impressa ou à mão?
"É fácil obter uma informação pronta na internet, copiar, colar e entregar assim, sem nem
sequer ler com cuidado a informação, sem
passar por uma elaboração cognitiva. Como é
que essas crianças vão envelhecer se o uso da
intelectualidade está relacionado ao menor
risco de doença de Alzheimer?", questiona.
O psiquiatra Wagner Gattaz, um dos coordenadores do Centro de Estudos de Distúrbios da Memória do Hospital Sírio-Libanês,
em São Paulo, não acredita que os problemas de memória estão aparecendo mais cedo. "O
que provavelmente está ocorrendo é que esses
problemas estão sendo detectados antes. Isso
é resultado do maior nível de atenção dos médicos para o problema, associado aos progressos nos instrumentos de diagnósticos", diz.
BAÚ DE RECORDAÇÕES
A professora aposentada Neuza Guerreiro
de Carvalho guarda as memórias de seus 75
anos de vida em três baús e em dezenas de livros. Ali estão registros escritos, fotografias e
objetos que contam não só a história de sua
existência mas também a dos familiares que a
antecederam e a sucederam e ainda a da cidade em que sempre viveu, São Paulo.
A lembrança mais remota que conserva?
"Uma caixinha que era do meu pai", diz ela, e,
do fundo do baú que leva o nome "Memórias
e Histórias", saca a caixinha cuidadosamente
embalada para que dure por muitos anos.
Dos baús de Neuza saltam certidões de nascimento, mantas de recém-nascidos, a capa
que cobria sua camisola na noite de núpcias,
na década de 50, e um disco contendo a gravação do seu casamento. Em cada uma delas, há
uma papeleta descritiva que contextualiza o
objeto em sua época. "Não guardo apenas coisas, registro o contexto. É a herança que vou
deixar para os meus netos."
A professora dá oficinas de memória usando
textos, músicas e conversas como estratégias
de estimulação. Em setembro, ela deve ministrar a oficina "Memória Viva da Lapa", no espaço Tendal da Lapa, em São Paulo.
Ela reconstruiu as ramificações da árvore genealógica de sua estirpe. "Vivi momentos de
muita emoção. Na basílica de Iguape (São
Paulo), achei o assento do batizado do avô do
meu marido, datado de 1872", conta.
GOSTO DO PASSADO
Década de 50. Numa casa pobre do bairro
de Remédios, zona norte de São Paulo, crianças olham a chuva cair lá fora. Estão imundas
de tanto brincar e irritadas por terem de ficar
dentro de casa. Irene é uma delas.
Do fogão à lenha encravado na cozinha de
chão de tijolos, sobe um cheiro de alho frito.
O aroma perfuma a tarde e atrai os pequenos
mal-humorados. O avô de Irene corta pães
em finas fatias e mistura com batatas, azeite e
sal. Faz miga, comida espanhola conhecida
em Portugal como sopa de pão. A tropa mirim se aquieta. Serenos, comem com as mãos.
Orgulhoso do feito, o avô toca violão.
"Era aniversário do meu marido
e eu estava servindo uma receita
russa quando me lembrei da miga", conta a dona-de-casa Irene
Galev Cavallini, 61. Correu e incluiu a passagem no livro "No Vão
da Escada", que publicou independentemente após fazer o curso
"Resgatando e Escrevendo suas
Memórias", do Colégio Santa Maria, em São Paulo.
"Escrevi sobre a minha vida,
mas não no estilo começo, meio e
fim", conta Cavallini. "Fiz do meu
jeito." Jeito esse que ela define como "uma colcha de retalhos" e
une as vivências do próprio curso
a episódios da infância, informações sobre antepassados e sobre
descendentes, lembranças de crônicas, jornais e acontecimentos de
épocas diversas. "Vou deixar para
os meus descendentes que hoje
não têm paciência de me escutar."
"Resgatar a própria história é um modo de se
redescobrir e de registrar quem você é", diz
Maria Aldina Galfo, professora do curso do
Colégio Santa Maria. O programa é destinado
a alunas com mais de 50 anos e usa técnicas como o estímulo aos sentidos, a leitura e o debate.
A duração não é predeterminada. "Vamos no
ritmo delas. A primeira turma levou um ano e
quis seguir com um novo curso."
A reconstrução dos episódios da vida serve
de pano de fundo ao fortalecimento da auto-estima. "A memória tem o poder de esclarecer
o papel de cada um. Lembrando o que passou,
você avalia o que fez e o que não fez e percebe o
que ainda pode fazer", afirma a professora.
Segundo o psiquiatra Orestes Forlenza, criar uma rede de associações é uma das estratégias preconizadas para estabelecer a memória
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"A memória é uma função cognitiva que depende diretamente dos afetos -paixões, alegrias, tristezas", define Valéria Lasca, psicóloga e mestre em gerontologia pela Unicamp. "É
por isso que alterações de afetos como a depressão e o transtorno ansioso interferem no
lembrar", completa a especialista.
Lasca e a fonoaudióloga Elisandra Villela
Gasparetto são autoras do livro "Exercite sua
Mente" (ed. Prestígio, 159 págs., R$ 34), que
aborda questões como memória, atenção, percepção, linguagem e criatividade.
Ela explica que a memória é gerada em três
etapas. "A mente recebe, registra e depois usa a
informação armazenada." Fatores como o humor, o estresse e até mesmo o uso de alguns
medicamentos podem comprometer a memória, alerta. "Falha de memória não é um
problema da idade. Qualquer um está sujeito,
embora os idosos estejam mais suscetíveis."
ÁLBUM DE RETALHOS
Mania nos Estados Unidos, na Austrália e no
Canadá, o "scrapbooking" (técnica de decorar
e preservar fotos por meio de colagens em álbuns artesanais) tem ganhado adeptos brasileiros nos últimos dois anos. O primeiro site
nacional sobre o assunto (www.scrapbookbrasil.com.br) foi criado em 2003 e já conta
com mais de 7.000 associados, e a primeira feira temática, Brasil Scrapbooking Show, começa hoje no Centro de Eventos São Luis, em São
Paulo, com 50 expositores.
"O objetivo não é só fazer um álbum bonito
mas ter um cuidado com a preservação da memória", afirma Munira Gottardello De Rocha,
37, que ministra cursos de "scrapbooking" no
Paraná. Para fazer o álbum de sua família, ela
precisou resgatar histórias antigas: "Nem imaginava que meu avô tivesse trabalhado numa
ferrovia e convivido com índios".
Uma de suas alunas, a advogada Flávia Georgia Toledo Ramos, 31, acredita que vai passar
os álbuns por gerações: "Achei fotos de tataravôs que eu nem sabia que existiam. Meu avô se
sentiu valorizado pelo meu interesse".
Segundo o pesquisador Iván Izquierdo, é
muito importante o resgate de histórias passadas por meio de conversas com pessoas mais
velhas. "Aos 14 anos, fiquei amigo de um homem de 93 anos. Ele estava perdido, não se
lembrava de nada. Mas descobri que ele tinha
participado de uma revolução em 1890. Quando fui perguntar, vi que ele se lembrava de tudo em detalhes", afirma Izquierdo.
Para o psiquiatra Orestes Forlenza, a prática
do "scrapbooking" remete à essência do raciocínio associativo. "Criar uma rede associativa é uma das estratégias preconizadas para
estabelecer a memória", afirma.
Foi por meio de associações com lembranças da infância que o enófilo Arthur Azevedo,
53, construiu a maior parte do seu "acervo olfativo". "O grande prazer é associar o aroma
dos vinhos às nossas vivências", afirma.
Suor de cavalo, couro, geléia de marmelo,
ameixa amarela, a herança olfativa de Azevedo é rica em cheiros da fazenda onde passou a
infância, em Mogi Mirim, no interior de São
Paulo. "Tinha uma bala de cevada que até hoje
me remete às matinês do cinema. É um aroma
que aparece nos vinhos toda hora", afirma.
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