São Paulo, quinta-feira, 08 de dezembro de 2005
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Outras idéias

Wilson Jacob Filho

Os ciclos que se sucedem e os ritos de passagem

Tinha um texto pronto para esta edição quando fui surpreendido por uma carta, endereçada ao Papai Noel, depositada sobre a minha mesa. Pela letra, reconheci o autor.


Não se pode dizer que existam ciclos mais importantes do que outros, visto que são elos de uma só corrente


Afirmava ser aquela a última mensagem a ele destinada e incluía frases como: "Nesses anos todos, acreditei com prazer na existência de uma pessoa boa como você", "nunca deixarei de acreditar em você" e "os anos rapidamente se passaram e eu cresci".
Senti de imediato que ali se encerrava um ciclo. Sem dor, sem amargura, sem sofrimento. A proposta de levar o que de bom foi apreendido sem a necessidade de perpetuar essa condição ficou explícita. Esse tipo de atitude, a meu ver, é fundamental para o desenvolvimento e a manutenção da saúde física e psíquica.
Ampliei o raciocínio, busquei pela memória e tentei identificar quantos ciclos começamos e findamos em nossas vidas. O inicial, no período intra-uterino, seguido de cada fase do desenvolvimento psicomotor; todos os degraus da escolaridade precedendo as várias etapas da vida profissional; as relações sociais, amorosas e institucionais que se estabelecem nessa mesma cronologia. Damos, conscientemente ou não, início e fim a cada uma dessas fases, valendo-nos, freqüentemente, de um ritual de passagem.
Alguns são tão freqüentes que nem nos apercebemos de sua importância. Assim é o nascimento, em que a proteção do ambiente materno é trocada pelo anseio à liberdade. Tanto os primeiros passos quanto as primeiras palavras marcam o fim da plena dependência em prol da progressiva autonomia. A formatura marca o limite entre o papel de estudante e o início da responsabilidade profissional, enquanto na aposentadoria há nítida modificação da relação entre os direitos e os deveres.
Outros, por serem mais peculiares, são freqüentemente mais valorizados. Uma marcante mudança de status social ou econômico, uma súbita notoriedade ou uma abrupta limitação por doença delimitam períodos distintos sem que a transição possa ser devidamente planejada e, em conseqüência, bem compreendida.
Não se pode dizer, porém, que existam ciclos mais importantes do que outros, visto que são elos de uma só corrente. Mais do que isso, é da integridade e consistência de cada um que decorre a estabilidade.
Naquela carta, li um ritual de passagem de quem se vale das experiências vividas para preparar as escolhas do futuro. Pude subentender que a crença na bondade humana está semeada, que a fidelidade aos bons sentimentos se enraizou e que a necessidade de delimitar etapas já se mostrou presente.
Em meio a uma inexorável sensação de nostalgia, senti-me feliz. Meu freqüente otimismo sentiu-se reforçado em acreditar que as novas gerações estão mais preparadas do que as anteriores, incluindo a minha, para reconhecer que não se pode avançar sem mudar e que o apego às ilusórias benesses do passado impede a compreensão do presente e a preparação do futuro.
Envelhecer é tudo isso levado ao extremo. Padecem aqueles que não conseguiram vivenciar cada um dos seus ciclos de maneira completa, encerrando-os no devido tempo. Peregrinam em busca da juventude idealizada, da memória prodigiosa ou da vitalidade plena sem que tenham feito bom uso disso. Se assim tivesse ocorrido, teriam muitas histórias para contar de cada fase e não precisariam tentar perpetuá-las ou mesmo reencontrá-las no presente.
Resta, porém, um grande conforto: sempre é tempo de encerrar os ciclos passados e rever aqueles que não findaram e que, por isso, não permitiram que outros fossem iniciados. Se assim conseguirmos agir, o envelhecimento será um período de vida muito generoso, no qual o fardo será leve, e os prazeres, fartos.
Pelo conteúdo daquela carta, posso prever que as gerações mais jovens aproveitarão muito melhor cada uma dessas fases. A quem, como eu, encontra-se no meio do caminho, cabe a constante responsabilidade de se permitir as adaptações necessárias para que o processo de envelhecimento seja contínuo e constantemente produtivo. Valeu, meu filho. Te devo mais essa.
WILSON JACOB FILHO , professor da Faculdade de Medicina da USP e diretor do Serviço de Geriatria do Hospital das Clínicas (SP), é autor de "Atividade Física e Envelhecimento Saudável" (ed. Atheneu)
@ - wiljac@usp.br



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