UOL


São Paulo, quinta-feira, 09 de outubro de 2003
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

s.o.s. família - rosely sayão

Crítico gastronômico dá exemplo a educadores

Há livro que, assim que chega até mim, eu devoro com avidez de tão gostoso que ele é. Depois de um tempo, volto a ele e, então, a segunda leitura fica até mais saborosa porque mais tranquila e permite algumas reflexões que, à primeira vista, parecem até desconectadas do texto. Foi o que aconteceu com o livro "O Homem Que Comeu de Tudo", de Jeffrey Steingarten (ed. Companhia das Letras). É a curiosa história de um advogado que se torna crítico de gastronomia e que tem um estilo de texto simplesmente delicioso. Mas o que isso tem a ver com educação, filhos, família?
Refeição em família sempre é um ótimo momento para atualizar emoções, encontros, conflitos e também para trocar idéias sobre fatos da vida e produzir boas conversas. Mesmo que não seja esse o objetivo, essas coisas sempre acabam acontecendo e isso torna mais concreto o vínculo que une o grupo familiar e que dá a relação de pertencimento a todos. Para os filhos, pertencer a esse grupo -a essa panelinha, como eu já chamei- é uma referência importante, que desenvolve a auto-estima, dá um norte, oferece segurança, dá limites. Refeição em família, mais do que sustentar o corpo, nutre o afeto de todos.
Mas a idéia que o livro me deu foi outra. É que, para começar a enfrentar a enorme responsabilidade de assumir a função de crítico gastronômico de uma importante revista, o primeiro passo do autor foi reconhecer e enfrentar suas limitações pessoais: listou uma série de aversões alimentares que tinha e organizou um programa para superá-las. Em outras palavras: ele assumiu a postura ética e escolheu ser corajoso para encarar os preconceitos que poderiam atrapalhar sua tarefa. Foi aí que comecei a pensar na postura dos educadores, familiares e escolares.
Decidir ter um filho ou tornar-se professor é, sem dúvida, um ato de coragem e de generosidade. Ainda mais nos tempos atuais, não é mesmo? Mas essa atitude inicial não basta para quem vai assumir a responsabilidade de educar crianças. À semelhança do autor do livro que citei, é preciso enfrentar as limitações que foram sendo aprendidas e acumuladas durante a vida para tentar ver, além delas, aquele que será educado.
É impressionante como alguns preconceitos tomam conta de pais e professores e assumem ares de conceitos próximos da verdade. Alguns exemplos? "As crianças do mundo de hoje são precoces, por isso não obedecem aos pais"; "as famílias jogam quase toda a responsabilidade da educação de seus filhos para a escola"; "lição de casa é importante para ajudar o aluno a aprender a estudar sozinho"; "filho único é problemático" etc. etc.
Quando pais e professores enxergam mais seus preconceitos do que seus filhos ou alunos, a liberdade de procurar caminhos novos para a educação deles fica bastante limitada. Isso não apenas torna a tarefa de educar muito mais árdua como provoca uma boa quota de sofrimento inútil para todos os envolvidos.
Volto ao livro: depois de cumprir o programa auto-imposto para extinguir o que ele chamou de fobias alimentares -programa, aliás, que teve o dever do exame final e o direito à cerimônia de graduação-, o autor precisou acrescentar um último passo. Precisou reaprender a humildade! Aí está: ela pode ser ponto de saída e de chegada de todo educador.
É preciso humildade para conhecer e reconhecer preconceitos, para ouvir -e ver- filhos e alunos e, portanto, para dialogar com eles. Sem a virtude da humildade, qualquer educador só enxerga a si mesmo e fica confinado dentro de seus próprios limites.
Mas é preciso humildade, novamente, para não se tornar autoritário e arrogante com filhos e alunos depois de um processo de formação e de autoconhecimento.
Por que você não experimenta listar alguns de seus preconceitos educacionais que dificultam a tarefa educativa? Se quiser, uma ótima fonte inspiradora pode ser esse livro. Quem gosta de gastronomia vai adorar -e quem não curte também.


ROSELY SAYÃO é psicóloga, consultora em educação e autora de "Como Educar Meu Filho?" (Publifolha); e-mail: roselys@uol.com.br


Texto Anterior: quem é ela
Próximo Texto: outras idéias - mario sergio cortella: "Nosotros"
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.