São Paulo, quinta-feira, 10 de agosto de 2006
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Outras idéias

Anna Veronica Mautner


Alta maturidade

Se você pensa que ter mais idade é usar bengala ou preparar-se para usá-la, engana-se. Seguem algumas curiosidades sobre a alta maturidade, ou terceira idade, ou melhor idade.
A pessoa saudável nessa fase da vida -com filhos casados, netos crescendo, sonhos mais ou menos bem realizados- curte os bons momentos. A gente se alegra com o que o hoje vai dando, enquanto espera o daqui a pouco. Planos de futuro? Só os que cabem na agenda da semana. O tempo é sentido de forma diferente quando o agora vigora com essa força toda. Uma das curiosidades dessa etapa da vida é que a relação com o tempo é bem diferente.
Cai feito uma luva o importado gerundismo usado pelo telemarketing, apesar de ser um português abominável. Nessa idade, vive-se em um presente estendido. Em uma só conjugação verbal, embutimos o prover-se de ontem para hoje e daí para amanhã. E, assim, vamos esperando sempre que amanhã possamos estar dando conta não somente da nossa agenda mas de algo mais.
A agenda é o guru que queremos ser capazes de seguir. "Já passei pela farmácia, fui à massagem, agora só falta eu ir voltando para casa porque eles (filhos, netos, amigos) já vão estar chegando e eu vou querer estar lá para não perder nem um minuto da prosa." "Vou querer estar lá." Nisso está dito que os que vão e chegam são jovens, e os outros são os além da maturidade. A idade do interlocutor está embutida no tempo do verbo. Jovens no indicativo, velhos nos gerúndios compostos.
A maior parte da agenda é voltada para cuidados consigo mesmo. E uma alta maturidade feliz inclui a transmissão da experiência de forma interessante, sem sermão, mas com exemplos de habilidades e ternurinhas. É bom ir passando adiante uma certa sabedoria aos descendentes e amigos.
Outra curiosidade da idade está na ocupação do espaço público. Dá para perceber que aí tem um vai-e-vem curioso. Eles ocupam o espaço público enquanto os outros estão nos escritórios, oficinas e escolas.
Não contribuem para a aglomeração. Os mais abonados gastam mais, os outros, de acordo com sua possibilidade.
Não percebo em seus olhos tristeza ou euforia. Vejo um apego à previsibilidade. Um dia igual a ontem é tudo o que estão podendo querer agora.
Observo que o espaço público é deles até as cinco da tarde, quando refluem, e o espaço vai para outros ocupantes. Trocando assim de turno, o espaço dá para todos. Constantes, com o mínimo de surpresa, todos encontram o equilíbrio psíquico e afetivo de dias felizes. Isso não é tudo sobre a tal alta maturidade... É o que coube neste espaço.

[...] A idade do interlocutor está embutida no tempo do verbo: jovens no indicativo, velhos nos gerúndios compostos


ANNA VERONICA MAUTNER, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed. Ágora)

amautner@uol.com.br


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