São Paulo, quinta-feira, 10 de outubro de 2002
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Escola deve ajudar aluno a se libertar dos pais

Muita gente reagiu quando questionei a prática, comum em escolas, de chamar os pais para discutir o comportamento do aluno, em geral indisciplinado, no espaço escolar. Muitos professores escreveram apaixonadamente, afirmando que isso é necessário já que a família continua sendo o maior responsável pela educação das crianças e dos adolescentes. Alguns pais também reclamaram, e uma mãe, em especial, fez um comentário muito interessante. Disse que delegar a educação dos filhos à escola faz parte de uma prática cada vez mais comum: a de delegar sempre aos outros a própria responsabilidade. E uma correspondência muito delicada e reflexiva de um pai, somada a essas, me fez retomar a questão. Vamos começar pensando sobre uma das funções da escola.
Claro que nem é preciso ressaltar a importância do acesso ao conhecimento sistematizado que a escola possibilita aos alunos: é isso que permite que tenham instrumentos para interpretar o mundo com mais recursos. Mas a escola tem outras funções tão importantes quanto essa. E uma delas é ajudar o jovem a se libertar dos pais.
A educação familiar é fundamental: são os pais que formam o ser humano e que transformam o filhote da espécie humana em uma pessoa com determinada moral e costumes, com virtudes e defeitos também para prepará-lo para a convivência. Porém a educação familiar sempre tem um viés: o da expectativa dos pais ante aquele filho e o do estilo e das possibilidades desses pais. Quer eles tenham consciência disso, quer não, isso é crucial para os filhos. E são esses laços emocionais que provocam a dependência dos filhos aos anseios dos pais.
Pois bem: quando a criança entra na escola -a de ensino fundamental, não a de educação infantil-, ela começa a virar as costas para os pais para passar a viver por conta própria. Faz relações com colegas diferentes, com novos adultos -os professores-, e é lá que encontra o espaço para experimentar ser uma pessoa diferente do que é ou do que deve ser em casa.
Algumas crianças demoram um pouco para se soltarem, outras já são mais vivazes e rápidas: logo nos primeiros anos já se comportam na escola diferentemente do que em casa. Mas, em geral, é lá pela terceira série que elas se apropriam desse espaço com mais tranquilidade, e é também nessa época que os professores começam a enfrentar dificuldades.
Chamar os pais nessas horas ou em outro momento qualquer até o ensino médio é uma prática que assume um caráter que muitos educadores não se dão conta: o de levar de volta a criança ao lugar de onde ela precisa e deve se libertar. Isso é trabalhar contra a autonomia, função primordial da escola!
Boa parte das escolas age assim muito bem-intencionada. Outras, infelizmente, porque é uma maneira de não assumir toda a responsabilidade que lhes compete. Mas mesmo as bem-intencionadas acabam tirando dos alunos a chance de aprender a conviver em sociedade de um jeito próprio. Mas claro que, para tanto, a escola deve ter o seu corpo de regras, deve fazer com seus alunos um contrato de convivência, de responsabilidade e de respeito mútuo. É basicamente esse o instrumento que lhe permite resolver quase todos os problemas que vão surgir diretamente com seus alunos.
Sempre ouço de professores uma expressão: a de que os alunos são uma "brasa encoberta". Querem dizer com isso que os pais não conhecem bem seus filhos já que em casa são de um jeito e na escola, de outro. E é assim que deve ser, porque esse é o caminho da busca de independência com a devida ajuda dos educadores na escola e dos pais em casa.
Cada vez que os pais são chamados pela escola para discutir, individualmente, o comportamento de seu filho, o discurso familiar é perpetuado, e, assim, a liberdade das crianças e dos adolescentes fica prejudicada. Mas queremos um mundo mais livre, mais responsável, mais autônomo, não é verdade? Por isso a escola deve ser diferente da casa. Em tudo, até no tratamento das transgressões. Mas essa conversa é longa, e sempre voltaremos a ela.


ROSELY SAYÃO é psicóloga, consultora em educação e autora de "Sexo é Sexo" (ed. Companhia das Letras); e-mail: roselys@uol.com.br



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