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outras idéias
mario sergio cortella
Refocilar é preciso
Fica malicioso perguntar a alguém se já está preparado para refocilar tranqüilamente nos feriados ou, melhor ainda, indagar a priori "refocilaste bem?"
Fevereiro é sempre um mês que carrega em si a agradável idéia
de menos trabalho (para quem já o tem), seja por ser um mês
mais curto (mesmo nos anos bissextos), seja pela constância
com a qual o Carnaval nele desponta. É mês também um pouco indefinido, inclusive quanto à origem do nome "februarius" -talvez vindo
do latim "februare" (purificar)- e acabou se tornando para nós uma
época raramente recomendável para iniciar projetos e atividades, exceto no insistente e fragmentado calendário escolar.
Fevereiro parece um intervalo temporal menos sério e austero, quase
deixando levemente suspensa a gravidade de nós requerida para o restante dos meses. Nele, o nosso desvelo dá-se o direito de relaxar um
pouco e dissolve em parte o apego aos cronogramas implacáveis ("Depois de fevereiro, a gente vê como faz").
No entanto, apesar da fingida vacuidade, fevereiro lembra para muitos um período de agradável refocilamento. Refocilamento ? Será que
Assis Valente sabia disso ao escrever "Brasil, esquentai vossos pandeiros, iluminai os terreiros, que nós queremos sambar?". Nosso idioma
guarda delícias surpreendentes e uma delas é que essa estranha palavra, "refocilamento", significa recuperação das energias perdidas. De
onde vem tal entendimento? Em latim, o vocábulo "focus" (fogo) ganhou o diminutivo "focilus" (foguinho), não na acepção ébria, tão inconveniente durante esses festejos, mas indicando o esquentar, aquecer e, por extensão, reanimar.
Refocilar é, portanto, reaquecer e revigorar! Uma pitada de erudição?
É só lembrar que Camões usa o verbo no Canto 9º de "Os Lusíadas",
dizendo "Algum repouso, enfim, com que pudesse / refocilar a lassa
humanidade". Fica malicioso perguntar a alguém se já está preparado
para refocilar tranqüilamente nos feriados ou, melhor ainda, indagar a
posteriori, na volta ao trabalho: "Refocilaste bem?".
Para muita gente, refocilar implica antes de tudo ser capaz de passar
os dias de folga "morgando". "Morgar", essa gíria brasileira que quer
dizer, entre outras coisas, dormir, nada fazer, deve ter a sua fonte indireta em "morgue" (necrotério, como descanso) ou até em morgado
(bens e privilégios herdados que permitiam não trabalhar mais). De
qualquer forma, "morgar" sugere o remanso, o sossego, a habilidade
lentamente desejada e desenvolvida para imobilizar as atribulações do
cotidiano e evitar perturbações momentâneas.
Refocilar é restaurar e reforçar. É recompor potências, recuperar forças, retomar a animação, isto é, a vitalidade. Note-se que, em todos os
desdobramentos e identidades desse verbo, aparece o prefixo "re", que
indica repetição ou reforço de sentido, de forma a trazer de volta aquilo que talvez tenha se ausentado. Mas logo agora, que o ano apenas começou? Não parece prematuro? Refocilar, todavia, é também desenfadar e desenfastiar, e aí o prefixo "des" é negativo, de modo a tornar nulo o enfado e o fastio. Qual enfado ou fastio? Aquele que os aborrecimento s, as importunações e os desprazeres miúdos provocam sorrateiros no nosso viver e que exigem, sim, uma carga refocilante.
Reavivar a chama, dar à vida um tempo de recreio, de recreação ("recreare", criar de novo), dando a esse recrear a perspectiva de diversão e
júbilo. Não é à toa que as nossas memórias se fartam vez ou outra na
recordação de grandes recreios vividos com transbordante alegria na
aparentemente longínqua infância.
Falamos muito -e isso é importante para afastar a síndrome do
ocupacionismo desenfreado- em valorizar o "ócio criativo", porém é
preciso ter cautela nessa empreitada, pois corre-se o risco de querer
tornar continuamente produtivo (na acepção utilitarista do termo)
aquele tempo livre que tanto reivindicamos. O refocilar deve somar-se
ao "morgar" e isso tudo tem de trazer à tona a possibilidade de viver
um fundamental "ócio recreativo".
MARIO SERGIO CORTELLA, filósofo, professor da PUC-SP e autor de "A Escola e o Conhecimento: Fundamentos Epistemológicos" (ed. Cortez/IPF), entre outros, escreve aqui uma
vez por mês.
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