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s.o.s. família
rosely sayão
Não trate o filho ou aluno como café-com-leite
Creio que todo mundo conheça o significado da expressão "café-com-leite".
Quando crianças estão participando de um jogo ou de uma brincadeira e acontece de uma
delas querer entrar, mas não apresentar condições de acompanhar as regras ou de envolver-se do mesmo modo que as outras, ela é admitida em caráter especial. Trata-se de um recurso para incluir essa criança -em geral,
menor do que as outras- naquele grupo sem,
entretanto, comprometer o andamento do jogo. Usada nesse sentido de inclusão, a criança
café-com-leite é valorizada, já que a mensagem do grupo é clara ao informar que, mesmo
reconhecendo que ela ainda não está em condições de partilhar os objetivos dos outros, é
acolhida e aceita por todos.
Acontece que muitos pais se apropriaram
do significado de tal expressão -sem perceberem- e passaram a usar o seu conceito
com o objetivo de proteger o filho, o que perverteu o sentido original dela. Os pais pretendem proteger o filho dos riscos da vida, dos
perigos, dos sofrimentos inúteis? Não.
O que eles querem é proteger o filho das situações que a vida oferece e que poderiam resultar em aprendizado por demandarem o enfrentamento de dificuldades ou exigirem esforço, concentração ou responsabilidade, por
exemplo. Em geral, essas situações provocam
um certo sofrimento e/ou frustração, e os pais
acreditam que fazem bem ao poupar o filho
delas. Não fazem.
Para explicar melhor, vou a um exemplo.
Início de ano escolar, vocês sabem como é,
muita expectativa de novidade para os alunos
e isso, certamente, cria algumas angústias e
ansiedades. Afinal, eles não sabem como será
o relacionamento com o novo professor e com
os novos colegas, ficam inseguros a respeito
do conteúdo que terão de aprender etc.
Os pais logo se dão conta de que o filho passa
por um período estressante e, assim que se
certificam da condição escolar nova, lá vão para a escola tentar diluir as dificuldades. Conversam com o diretor e/ou com o coordenador para solicitar troca de turma a fim de que o
filho fique com o professor que é mais amável
ou para que permaneça com colegas já conhecidos; pedem entrevista com o novo professor
para explicar as peculiaridades do filho e, assim, procurar diminuir -por antecipação-
as exigências que poderiam vir etc. Em outras
palavras, os pais dizem à escola que o filho é
café-com-leite.
Mas isso não ocorre apenas em relação ao
ambiente escolar. Uma garota pediu aos pais
que seu presente de aniversário fosse dado
bem antes da data porque ela queria muito
-mas muito mesmo, segundo o pai- participar de uma viagem com um grupo. O pai e a
mãe conversaram e decidiram que valia a pena dar o presente. Dois meses depois, no dia
do aniversário, o que fizeram? Compraram
um outro presente porque imaginaram que a
filha iria sofrer muito por não receber nada
dos pais justamente naquele dia. E é bom ressaltar que foi iniciativa dos pais, e não um pedido da garota. Em outras palavras: o casal tratou a filha como se ela fosse café-com-leite.
Ora, abrandar situações complicadas da vida e que as crianças precisam e devem enfrentar é fazer pouco delas, é subestimar todo o
potencial de desenvolvimento que elas têm e,
inclusive, roubar delas a oportunidade de
crescer e, assim, alcançar autonomia e liberdade de vida. Para falar bem a verdade, os pais e
professores que agem dessa maneira é que
têm a dificuldade que apontam como sendo
de filhos ou alunos. A dificuldade desses adultos é a de enfrentar uma situação difícil: acompanhar a nova geração no ato de cair na vida.
Nessa aventura, filhos aprendem a desfrutar
dos prazeres que a vida oferece, mas também
sofrem as dores que o crescimento provoca.
Vamos deixar essa criançada entrar no jogo
da vida com dignidade! Jogador café-com-leite não joga para valer, não participa de verdade, não é?
ROSELY SAYÃO é psicóloga, consultora em educação e
autora de "Como Educar Meu Filho?" (Publifolha); e-mail:
roselys@uol.com.br
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