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São Paulo, quinta-feira, 13 de março de 2003
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outras idéias - thereza soares pagani

O bebê brinca com o próprio corpo e com o da mãe. E isso é tão difícil na sociedade moderna, que terceiriza cedo essa primeiríssima página da enciclopédia humana

Brincar desde os primeiros dias de vida

Com a experiência que os 71 anos bem vividos numa família numerosa, lúdica e com pais atentos a nos proporcionar alegria compartilhada com todas as camadas sociais me trouxeram, aprendi desde cedo a conviver com as diferenças. Com as físicas de filhos de trabalhadores amigos que tinham síndrome de Down ou que eram cegos, paralíticos, gagos, com as diferenças sociais, pois convivi com ricos e pobres, e com as raciais, pois relacionava-me com negros filhos de escravos alforriados, índios, poloneses, chineses, russos, cossacos que me maravilhavam com suas danças e roupas diferentes e ciganos. Aprendi muito a respeitar, a dividir e brincar na pequena cidade de Colatina, ao norte do rio Doce, na "Princesa do Norte".
"Eu brinco, eu aprendo." Frase curta da maior simplicidade e cheia de profundidade para o ser humano. Desde o nascimento, o homem lúdico é sábio. Enfrenta com atitude positiva as intempéries do percurso da sua vida. Brincar é divertir-se infantilmente, folgar, saltar, agitar-se em movimentos caprichosos, gracejar, proceder levianamente, enfeitar caprichosamente, tratar com leveza coisas de ponderação ou perigosas.
Mas, agora, o brincar considerado como "trabalho" da criança é matéria nova no currículo, tanto quanto os direitos humanos. Será que são descobertas atuais? Acredito que sim: com tantas exigências intelectuais, os homens se esqueceram de etapas fundamentais do desenvolvimento harmonioso do ser humano, principalmente o da criança de zero a sete anos, período precioso para a formação do futuro cidadão.
Aprende a respeitar quem foi respeitado, tem limites quem recebeu limites na hora adequada, e não depois de apresentar comportamentos desastrosos, que vão marcá-lo como desobediente, rebelde, hiperativo, mal-educado e todos os adjetivos que as famílias, a pré-escola e a sociedade detestam. Mas isso acontece porque estes mesmos agrediram na base esse ser maleável, mas carente do precioso tempo de brincar.
Muitas pessoas pensam que as crianças brincam só quando têm dois ou três anos. O bebê brinca com o próprio corpo e com o da mãe logo no aleitamento. Nessa hora, o olhar da mãe e o da criança estão atentos: é aí que o olho no olho se estabelece. E isso é tão difícil na sociedade moderna, que terceiriza cedo essa primeiríssima página da enciclopédia humana.
Qual seria o melhor espaço para ela estar nos primeiros meses? No bebê-conforto? No cercado? No primeiro, a posição da criança fica inadequada e paralisante, como se tivesse uma viseira grande que impede o olhar investigador lateral. Já o cercado é uma prisão que cerceia a criança com telas e brinquedos industrializados pouco criativos e que a deixa sem visão de outro ser semelhante. O espaço mais simples é o chão limpo da casa, que pode ser forrado com um colchonete de espuma ou esteira e coberto com um pano.
E o andador? Esse provoca deslocamentos inesperados, quedas graves, enroscamentos embaixo de mesas, sem falar da insegurança gerada por um aparelho que estimula de fora para dentro. Deixe a criança descobrir o engatinhar, levantar a cabeça e olhar em todas as direções. Você, cuidador responsável, pode estar trabalhando por perto. Para ser autoconfiante, a criança precisa de limites claros e de firmeza.
Depois de muito rastejar e engatinhar, começa a sentar-se e tenta apoiar-se para ficar de pé e explorar outro patamar. Os adultos devem acompanhar com entusiasmo e dar estímulo social, nunca esquecendo que essa atividade, apesar de lúdica, cansa muito. Por isso a criança não deve ser apressada a sair andando. O melhor é deixá-la voltar a rastejar e a engatinhar com satisfação, até que ela própria se surpreenda dando os primeiros passos com gorjeios e palmas quando volta com o bundão no chão. Nessas horas, a criança se sente maravilhada, emocionada, e todo esse esforço pode provocar um choro profundo, o que é normal. Aí, nada melhor do que um colo aconchegante e um banho acompanhado de um diálogo aprovador da nova conquista. Trocador: hora muito linda do toque, massagem querida e "brincada".
Beber água também é uma atividade lúdica. É bom lembrar que a criança é ágil e ainda não tem noção de limites, que gosta de degustar primeiro com as mãos, com os olhos e com o nariz e, por último, com a boca. Com essa permissão, não é preciso aeroporto, aviões e deslocamentos para alimentá-la. Sua "majestade" necessita é de firmeza, carinho e muito amor. Novas etapas virão. Com essa primeira bem sentida e o corpo vivido, elas se seguirão como uma roldana macia.
THEREZA SOARES PAGANI é educadora e diretora da Tearte, escola de educação infantil; e-mail: tepagani@uol.com.br


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