São Paulo, quinta-feira, 13 de abril de 2006
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S.O.S. família

É muita culpa!

Outro dia constatei um fato bem interessante que se tornou o tema de nossa conversa de hoje. Relendo e separando por assunto toda a correspondência enviada a esta coluna no ano passado, percebi que uma das palavras mais usadas pelos leitores é culpa, independentemente do tema principal da mensagem.
Como são as mães que escrevem em maior número, foram elas que mais usaram essa palavra. Alguns pais, entretanto, também utilizaram o termo. A culpa aparece associada a questões bem diferentes, mas é sempre em relação aos filhos.
Há culpa em casos de separação; em situações de desemprego ou instabilidade financeira, que resultam em restrições na vida dos filhos; em caso de mudança domiciliar, incluindo-se a de país; em decidir colocar a criança na escola; em trocar de babá; em deixar os filhos com os avós; em comprar ou não comprar algo; em permitir ou não que saiam com os amigos. É muita culpa!
Um exercício interessante seria imaginar em quais situações os pais estariam livres dela.
Existe uma interpretação recorrente a respeito dessa culpa, que teria origem na falta de tempo dos pais para estar com os filhos, dadas as condições atuais da vida urbana e da profissional. Eu, pessoalmente, nunca consegui aceitar de imediato essa hipótese, e agora temos a chance de ampliar a interpretação dessa questão que interfere tanto nas relações entre pais e filhos e, portanto, na educação praticada com os mais novos.
Vou usar dois exemplos: um da vida pública e um da intimidade de uma mãe. Quero ressaltar, antes de tudo, que não se trata de localizar nessas mães um problema. Elas apenas foram porta-vozes de uma situação que é geral.


Filhos que são idealmente tão desejados acabam por se transformar em impedimentos, em dificuldades, em desarranjo e em transtorno

O primeiro exemplo foi publicado como notícia. A apresentadora Angélica, em entrevista coletiva para apresentar seu novo programa de TV, ao explicar o atraso do projeto, disse que a vinda do filho deu uma "atrapalhada" na sua vida profissional. O segundo, uma amiga me contou. Ela testemunhou uma colega dizer ao filho, que a chamava insistentemente no telefone celular, que ele era um "estorvo" na vida dela.
As duas palavras usadas levam a um sentido comum que, quando aplicado ao contexto de vida de quem tem filhos, pode gerar efeitos previsíveis e imprevisíveis na formação dos mais novos. Se tomamos as manifestações das duas mães como emblema da sensação dos atuais adultos que se tornaram pais, podemos dizer que os filhos são um obstáculo na vida das pessoas, já que dificultam o seu cotidiano e, muitas vezes, frustram os seus anseios. Eles tornam -ou deveriam tornar- a vida de seus pais muito mais confusa e menos centrada em si mesmos, além de tolher a liberdade de irem, virem e viverem do modo que melhor lhes convier.
Filhos que são idealmente tão desejados e sonhados acabam por se transformar em impedimentos, em dificuldades, em importunação, em desarranjo e em transtorno, vejam só que incoerência. Por que será?
Bem, não podemos esquecer que vivemos num certo tipo de cultura que afeta a vida de todos. Um aspecto dela é o individualismo exacerbado aliado ao amor dirigido a si próprio -o chamado narcisismo-, que, associados a um outro aspecto, o enaltecimento da juventude, podem gerar estranhamentos a quem se dispõe a ter um filho.
É por isso que, hoje, muitas mães e muitos pais sentem os filhos como estorvo ou atrapalhação. De pequenas coisas -como a casa arrumada e limpa; a mesa posta com perfeição; os CDs organizados de um determinado modo; as plantas e os enfeites nos lugares certos etc.- a outras menos rotineiras, tudo sofre mudanças significativas quando se tem filhos. Mas, no mundo atual, tem sido particularmente difícil reconhecer e aceitar esse fato porque não admitimos que nada interfira nos rumos e na ambiência de nossas vidas. Se assim for, é bom lembrar os versos iniciais do "Poema Enjoadinho", de Vinicius de Moraes: "Filhos...Filhos?/Melhor não tê-los!". Com culpa, as atitudes educativas dos pais dificilmente funcionam, já que os filhos, de imediato, percebem a falta de firmeza que ela provoca.

ROSELY SAYÃO é psicóloga e autora de "Como Educar Meu Filho?" (ed. Publifolha)
@ - roselysayao@folhasp.com.br


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